terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

REENCONTRO

Tive uma mãe disciplinadora, não brincava em serviço.
Ela se tornou mãe aos dezoito anos, quando teve minha irmã.
Mamãe era senhora absoluta dos seus domínios, casa e filhos.
Tinha um olhar penetrante, desconcertante, fixava seus olhos verdes no alvo e atirava. Entendíamos seus olhares codificados.
Era de poucas palavras e pouca demonstração de carinho, nos amava sem arroubos, sem beijos e abraços, colo, então, só em última necessidade.
Nos protegia, alimentava, cobrava resultado na escola e retidão no caráter. Não admitia deslize na honestidade, de palavras ou ações.
Quando fazíamos algo errado, ou alguma travessura, lá vinha aquele olhar matador, a sobrancelha esquerda ia de encontro à raiz do cabelo, subia ao alto da testa e o tiro certeiro nos paralisava.
Mas ela tinha um lado moleque, de trepar em árvores, de soltar pipa (é, minha mãe era a rainha do cerol), nos ensinou a jogar bola de gude no tapete da sala, a jogar as cinco pedrinhas, a pular amarelinha. Coisas que a maternidade precoce quase roubou.
Ela sabia se divertir, gostava da casa cheia. 
Não era de amizades, conversinha de vizinhos e, às vezes, implicava por implicar. Quando não gostava de uma pessoa, riscava do mapa e não admitia sequer um bom dia, mas quando gostava era parcial ao extremo, dava a roupa do corpo, se necessário, e não pedia nada em troca.
Por sua causa fui estudar balé, ia forçada cumprir o sonho da vida dela. Levei o balé por sete anos da minha vida e nunca faltei um dia sequer. E minha mãe assistia a todas as aulas com interesse, como se dançasse em mim.
Também o teatro aconteceu na minha vida por determinação dela.
Fiquei temerosa na hora de fazer a inscrição para o Conservatório Nacional de Teatro (hoje, Uni Rio). Ela foi até lá com meu pai e fez por mim. Dois dias antes da prova de interpretação, me avisou que eu precisava preparar um texto. Entrei em pânico e, mais uma vez, aqueles olhos cravaram em mim:-"Vai pro espelho e treina, você é capaz". Ela não permitia não tentar. Reprovação não era mancha, covardia, sim.
Passei em todas as provas que vieram depois dessa e, em toda a minha curta carreira, meus pais estavam lá.
Sem saber, minha mãe me deu um norte, me apontou o caminho. Ela queria tanto ser artista que, acho, se realizava nas minhas conquistas. Mas, mesmo que tenha sido assim, ela viu em mim o potencial que eu não acreditava que tinha.
Não continuei bailarina ou atriz, sei que tinha talento, me diziam que eu era boa mas, no fundo, não era minha vocação, era a vocação de minha mãe.
Hoje eu entendo e agradeço pois as duas profissões me forjaram, moldaram a minha disciplina, minha determinação, minha personalidade.
No decorrer da vida se tornou rabugenta mas de uma maneira engraçada, como se representasse um papel.
Era autoritária e machista, qualquer mulher era culpada, até prova em contrário.
Adorava o Fluminense e odiava qualquer juiz que não garantisse a vitória de seu time, todos roubavam quando seu Flu perdia.
Seus netos eram sua alegria e diversão, prá eles nada era impossível e por eles se adoçava.
Manteve, até o fim de seus dias, seu protagonismo, era a mãe e não abria mão do seu poder.
Tivemos brigas terríveis porque ela não permitia que cuidassemos dela, era como se usurpassemos seu mando.
Por várias vezes, adulta, me afastei por não aguentar sua mão de ferro. Ela não aceitava não poder mais me controlar e dizia que eu sempre fora a rebelde. Mas não foi ela quem me ensinou a não aceitar prato pronto, a querer saber e entender o porque das coisas? Como ela mandava e a gente obedecia, já que não podiamos questionar, virei pelo avesso e me tornei independente das vontades dela. Acho que ela nunca me perdoou, mas não me arrependo.
Minha mãe era guerreira e levava a gente à luta. Mostrava seu amor brigando por nós e nos educando como ela pensava ser certo. Nunca permitiu que quebrassem as nossas asas e, literalmente, saia no tapa com quem risse de nossas fraquezas. Tentava interferir em nossas vidas e, hoje percebo, viver conosco a juventude que ela poderia ter tido, se não tivesse sido mãe tão cedo.
Faz um ano que ela se foi, mas eu penso que, enquanto existir uma única pessoa que se lembre dela, ela vive.
Não foi uma mãe perfeita, nenhuma é, mas não abdicou nem desistiu nunca do seu destino.
Saudades.

3 comentários:

  1. As palavras somem quando a saudade aperta...a única coisa que consigo dizer é que ela me faz muita falta!!!
    Semana difícil essa...

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  2. Muitas saudades da vovó..:(
    Saudades das palhaçadas dela, saudades de jogar bingo com ela, saudades de almoçar quase toda semana depois da escola com ela, saudades de passar meus finais de semana com ela, saudades de comer pizza com ela, saudades de assistir corujão com ela, saudades da época que ela morou com a gente na casa, saudades de tomar cervejinha com ela, saudades da lasanha dela, saudades do café dela...saudades. :(
    Bee

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  3. Saudade da rabugice dela mas, principalmente, saudade dos brincos de pressão que só ela usava!!! :))

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