segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O VIOLONCELO

Admiro quem toca um instrumento, qualquer um.
Mais que admiração, tenho inveja. Assumo.
Adoraria ter aprendido música.
Aprendi canto orfeônico e achei um saco, até porque não tenho voz nem volume prá cantar.
Minha voz está mais prá sussurrar do que prá trinar. De passarinho não tenho nada, sequer a afinação. Ficava lá, abrindo e fechando a boca, enganando as notas.
Aprendi um pouco de piano quando não devia, não tinha maturidade e nem foi minha escolha.
Hoje, percebo a oportunidade perdida. Acontece.
Tinha aulas em casa e, como não era o que queria, seduzia o maestro com todo tipo de elogios.
Elogiava suas mãos, pedia que ele tocasse prá mim, fazia cara de enlevo e ele se entusiasmava.
Eu tinha nove anos e já brincava de atriz.
O maestro, que devia ser um pianista frustrado, tinha em mim a platéia que ele precisava e, sem saber, me apresentando aos clássicos, me fez gostar de Chopin, Mozart, Rachmaninoff, Tchaikowski, meu favorito. Despertou em mim outras possibilidades, outra sonoridade, me mostrou o adágio, o allegro e outras variações. 
Meus pais jogaram dinheiro fora, eu não saia das escalas, em compensação meu gosto musical ficou mais exigente, mais sofisticado, mais apurado.
Mas, ainda assim, não aprendi a ler música ou tocar o instrumento que queria: cello.
Meus queridos pais preferiram entulhar a sala com um piano a me dar um violoncelo.
Eles diziam que cello não era instrumento para moças, que era pesado prá carregar e exigia força.
Pergunto: piano se carrega nas costas? É leve? Achamos piano em qualquer lugar? Preconceito!
E qual instrumento é mais feminino do que o cello?
É um instrumento que exige que você o abrace, que seu corpo encoste nele, que seus dedos o façam vibrar, que cobram  energia e, às vezes, suavidade. Seu som é grave, meio abafado, forte, potente. As pernas entreabertas envolvem, seguram e sentem a música reverberar pelo corpo. O rosto se encosta na madeira como que oferecendo o ouvido ao segredo.
Quando tocado com arco, há que se ter delicadeza, cuidado prá não romper os fios do arco ou as cordas do cello.
O cello é a analogia perfeita do amar o outro, cuidar do outro, extrair do outro, com cuidado, seu melhor som. É o calor do aconchego, o prazer do toque, a repercussão do grave que vibra e quebra geleiras provocando avalanche.
É um instrumento para poucos, escolhidos por ele. Tenho prá mim que ele é sábio, se mistura a orquestra prá não chamar atenção sobre o seu poder de sedução, cello é um perigo!
Perigo prá quem ousar se aproximar, perigo prá quem tentar entrelaçar suas pernas nele e pretender domá-lo.
Cello é prá pessoas que têm coragem de encarar a estiva que ele exige, de dedicar horas à perfeição, de se perder no abraço que ele cobra.
O corpo dói ao carregá-lo, cansa com o esforço que se faz prá tirar dele o prazer escondido nas cordas, sua de exaustão ao término da sinfonia.
Melhor parar por aqui, não sei mais se estou falando de violoncelo ou se já fui parar em outra dimensão.
Percebi, nesse instante, que o que eu queria era ser abraçada, ouvida, tocada, cuidada por alguém que conseguisse criar música em mim.
Cello, céu, violoncelo, vasconcellos, eu, violoncellos.
Rendo-me às evidências: o que eu queria, mesmo, era ser um violoncelo!

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

TELEPATIA

"O Livro do Desassossego".
"As Afinidades Eletivas".
Ela tentando ler.
Ele fingindo que lia.
Ela buscando uma posição confortável.
Ele afundado na poltrona.
Às vezes, seus olhos se encontravam e, ràpidamente, eram desviados.
Ela acende um cigarro.
Ele mantém o cachimbo apagado, preso entre os dentes.
Ela pensa que precisa contar, desabafar.
Ele pensa que ela esconde algo.
--" Ai, meu Deus, me ajude! "- ela pensa.
--" Tenho que virar a página."-ele pensa e vira.
--" E se ele não me perdoar?"
--" Se for o que eu imagino que seja..."
--" Não sei como começar."
--" Preciso estar preparado."
--" Pode ser um choque."
--" Ela não vai me surpreender."
--" Será que ele vai entender?"
--" Qual desculpa ela está preparando?"
--" Vou dizer que não pretendia ferí-lo."
--" Ela vai tentar me dizer que não fez por mal?"
--" Ele vai acreditar em mim?"
--" Ela acha que me engana."
--" Como eu fui deixar que isso acontecesse?"
--" Por que ela foi fazer o que eu acho que fez?"
--" Mas, quando aconteceu com ele, eu perdoei."
--" Ela vai dizer que me perdoou, quando eu fiz."
--" Mas será que não vai parecer que eu fiz por vingança?"
--" Será que ela perdoou ou usou esse tempo prá preparar o troco?"
--" Eu posso usar esse argumento, se ele não aceitar."
--" Ela que não pense que, depois de tanto tempo, eu vou engolir essa historinha."
--" Mas eu precisava de ar, precisava de atenção."
--" Será que fez isso prá chamar minha atenção?"
--" Não é  verdade. Fiz porque queria, porque me senti desejada, depois de tanto tempo."
--" Não, não foi prá me acordar. Foi prá testar o meu limite."
--" Será que ele vai entender que não tem nada a ver com ele? Com o que temos?"
--" Ela não aceita que o tempo diminui o desejo."
--" Quando foi que ele parou de me querer?"
--" Temos vinte anos de vida em comum e ela ainda acha que o tesão deve ser o mesmo."
--" Por que meu corpo não sossega?"
--" Tenho alunas interessantes e interessadas, isso pode dar tesão."
--" Ainda quero ter e dar prazer. Por que não com ele?"
--" A mesma cama e mesa por vinte anos, enjoa."
--" Porque ele não me vê mais como mulher, agora sou a companheira de quarto."
--" Tenho esperado por essa rebelião, é típico de mulher."
--" Eu fui enxergada, e foi bom. Mas me sinto culpada."
--" Não vou facilitar, deixo ela se remoer e, aí sim, contorno a situação."
--" Por que não me acomodo? Por que sinto tanta urgência em viver o que preciso?"
--" O que ela quer mais da vida?"
--"Por que sinto que devo me apresentar à vida?"
--" O tempo, agora, é de espera."
--" Melhor não falar nada, esquecer o que aconteceu, me anestesiar."
--" Ela vai acabar entendendo."
--" Nunca vou entender porque a vida termina antes de acabar."
--" Não somos mais os jovens que éramos."
--" Ainda sou aquela que quer aprender, que olha prá frente a espera do imprevisto."
--" Não persigo mais os sonhos, acalmei minhas vontades, refreio meus desejos."
--" Sei que meu caminho e possibilidades estão diminuindo."
--" Ela sabe que, no fim, somos nós dois e mais nada."
--" Sei que ele precisa de mim, embora não me tenha mais."
--" Ela precisa de mim prá dividir a solidão."
--" Senti, talvez pela última vez, meu corpo ser tocado por mãos ávidas."
--" Acho que ela não vai me falar nada, não precisa, não vai fazer nenhuma diferença."
--" Ele percebeu o que aconteceu e preferiu não confrontar, teve medo."
--" Melhor assim, passar por cima."
--" Melhor assim, sufocar a verdade."
Viraram as páginas, ela com a culpa de ter sido perdoada, ele com a consciência tranquila de ter fingido que a perdoava.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

RÁDIO SAUDADE

Sempre que ouço Caetano, lembro de minha querida Gotty. Amiga de longa data e moradora vitalícia em meu coração.. Não sei porque faço este link, não consigo ligar uma música específica a um determinado momento. Deve ser porque Caetano foi meio que onipresente nos anos setenta.
E aí, como que por feitiço, desencadeio lembranças de uma época rica em acontecimentos, alguns históricos.
Naqueles anos o mundo fervia, e nós ardíamos ao sol do Rio.
Enquanto a repressão comia solta, éramos felizes, apesar dela.
Jovens e destemidos, tínhamos um bom combate, lutar contra a ditadura, cada um a seu modo.
Na pior época, estávamos fazendo "Roda Viva", peça de Chico Buarque, que os censores, cochilando, deixaram passar e que se tornou, depois de algum tempo, alvo de ataque do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), quando fazia temporada em São Paulo.
Foi no teatro Princesa Isabel que a camisa ensanguentada do estudante Édson, morto no Calabouço (restaurante de estudantes que existia no centro da cidade) foi mostrada ao público no fim da peça. Se não me falha a memória, foi o primeiro teatro, depois aquela camisa percorreu todos os outros.
Fizemos parte da Passeata dos Cem Mil e fazíamos história, sem saber.
Esse é o lado ingrato de "fazer história". Quando estamos lá, não imaginamos o desdobramento, não calculamos o que aquilo representa no momento em que acontece. Agimos por impulso, por necessidade de reagir à truculência, pela revolta de tentarem calar um povo com armas.
Houve os que partiram prá luta armada, não era o meu caso, tenho pavor a qualquer arma.
Tempos sombrios mas, também, tempo de transformação.
Tempo do desbunde, da fossa, do movimento hippie, de muito sexo e rock'n'roll.
Tempo de amor livre, de grandes paixões, de arrebatamento.
Tempo contraditório, de guerra e união, de mordaça e, por outro lado, liberdade.
A juventude dá este poder, ser o que se quer, fazer o que der na veneta.
A falta de laços mais apertados permitia uma quase irresponsabilidade.
Gotty era e é mais alternativa, viveu em comunidade, é mais desprendida, sabe tudo de horóscopo, I Ching, estuda e aprofunda seus interesses, pinta, borda, escreve, é artista de verdade.
Eu sempre fui mais observadora, mais tímida, menos arrojada. Sempre precisei de chão firme prá pisar embora desse umas "voadas". Diria que eu era controlada. Tinha medo de enlouquecer e perder o rumo, vi muitos amigos baterem asas prá sempre, por drogas, pirações, pelo pacote daqueles tempos.
Foi uma época extremamente criativa e inspiradora. A cultura foi protagonista, deslanchou um movimento de resistência que se expandiu e invadiu mentes adormecidas. Foi bonito viver naqueles tempos. Não sou saudosista mas tenho memória e adoro ter vivido o que vivi.
E a cereja do sundae era o encontro da nossa tribo na praia de Ipanema, nas Dunas da Gal.
Todos de cara amassada das noites nos bares, discutindo o rumo da humanidade, debatendo, jogando conversa fora, rindo uns dos outros, sofrendo amores perdidos, vivendo intensamente, sendo jovens.
E tudo me veio à mente por causa de uma rádio qualquer que tocava Caetano e me lembrou da Gotty, do Solar da Fossa, dos festivais de música, do teatro engajado, da cultura efervescente, do movimento estudantil, aqui e no mundo, dos hippies, dos ensaios, das aulas na escola de teatro, dos amigos de sempre, dos que se foram e dos que ficaram no meio do caminho, me lembrou de uma vida que valeu a pena.
Éramos jovens e felizes. E sabíamos.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

DE SALTO ALTO

Não tenho medo de ser ridícula, tenho medo de ser patética.
Não ligo se o salto quebrar na hora mais inconveniente, me incomoda descer do salto e me esborrachar.
Quando espero muito e não acho nada, me enraiveço. Aprendi que acreditar pode ser bom mas pode ser, também, estupidez.
Acredito, de verdade, que todo mundo é capaz de ser generoso, amável, mas sei que todos nós temos demônios controlados, reprimidos, escondidos.
Alguns desses diabinhos são simpáticos, travessos, outros são violentos, perigosos e, por vezes, indomáveis.
Eles habitam um lugar escuro e esquecido, até serem libertados das masmorras.
Geralmente nos apoiamos em algum fator que "independe da nossa vontade" para liberá-los.
Temos desculpas clássicas para escudar o descontrole: bebemos além da conta, sofremos calados por tanto tempo que a panela destampou, aguentamos provocações, engolimos maus tratos, tudo desculpa para o demônio aflorar. Acontece, meus amigos, que soltamos os bichos porque queremos e aí, vamos combinar, arquemos com as consequências sem culpar ninguém.
Todo mundo tem o direito de mostrar suas imperfeições, somos humanos, caramba! Erramos, enganamos, mentimos, despistamos, traímos, faz parte do pacote que somos.
Por que teríamos que ser santos? Não somos. Alguns que foram canonizados, sofreram horrores e isso me parece uma patologia. Nada contra os santos, sou até devota de um, mas, cá prá nós, salvaram a humanidade? Que nada, tá cada vez pior.
Mae West, uma atriz que foi um escândalo prá sua época - diga-se de passagem que não sou daquele tempo, embora já tenha uma longa estrada- enfim, essa mulher sem amarras dizia: "Quando sou boa, sou muito boa, mas quando sou má, sou melhor ainda"! Preciso traduzir?
Não tenho pudores em me expor, mas não permito que me exponham sem meu consentimento. Sou transparente até o momento que embaçam a minha vida, aí, colega, é cada um por si e eu vou botar meu exército no campo de batalha. Não procuro conflito, mas não fujo da raia. Farinha pouca, meu pirão primeiro.
Tento não machucar quem não merece, às vezes escapa, mas procuro não fazer mal aos outros. A culpa católica me cobra noites de insônia. Tenho pesadelos, me assisto ardendo nas brasas do inferno, isso quando consigo dormir. Como não quero perder uma noite de sono, evito a chateação.
Não sou boazinha, é que não gosto de estar presa a nenhuma emoção que me faça mal. Simples assim. Se me faz mal agir de determinada forma, não ajo em benefício próprio. E ainda faço um favor ao outro, poupando o melodrama. Parece insensibilidade, né? Egoísmo, talvez? Que tal mudar o foco? Olhar o outro e não a mim mesma? Mas, diga lá, se eu não cuidar da minha sanidade, quem vai cuidar? Elementar, meu caro Watson.
Posso estar muito enganada e, se for assim, minha vida inteira foi um grande erro, mas tenho cá prá mim a quase certeza de que quem não pensa em si, antes de pensar no outro, está fadado a ser um mártir. E um chato!
Esse negócio de doar-se sempre, dar sem medida, se entregar e reforçar o ego alheio só funciona na literatura, nas novelas, filmes e afins. Isso é ficção. Porque, meu caro amigo, se você não tiver uma boa provisão de amor próprio, o fundo do poço será raso prá seu mergulho. Se nada me derem de volta, serei um balão vazio, não vou subir. Como saco vazio não fica em pé...
Tive grandes paixões em minha vida mas a falta delas não me fez desmoronar. Sofri o tempo necessário, vivi o luto, perdi quando ainda não tinha acabado prá mim. E daí? Morri por causa disso? Entrei para um convento, me despedi da vida, de mim? Nananinanão. Ressurgi mais forte, mais preparada prá sofrer menos, entendi que é assim mesmo, não existe tempo igual, amor igual, intensidade igual, nada é igual entre pessoas. Se eu amava mais do que era amada, não questionava, não pretendia que o outro me desse o que não conseguia, aceitava ou não, mas não perdia a consciência de mim, jamais precisei do olhar, do carinho e da atenção do outro prá ser quem sou.
Não sou exemplo, eu sei, não tenho exemplos, não me espelho em ninguém porque minhas experiências são distintas, mantenho um instinto de sobrevivência feroz. Graças ao bom Deus!
No dia em que me virem sendo capacho de alguém, seja quem for, assistirem alguém limpando os pés em mim, me internem porque já estarei em avançado estágio de loucura.
Sou suscetível, como todo mundo, de vez em quando dobro os joelhos com o soco que me atinge, vejo estrelas como em um desenho animado, visualizo aquele "POW" no balão do quadrinho, o olho fecha de tão inchado, o sangue escapa das veias, não minimizo a dor da pancada, sinto. Mas, pera lá, vou engatinhar? Já passei desta fase. Se não sou quadrúpede tenho que ficar em pé, até a próxima porrada. Não desvio, não, aprendo a cair em solo mais macio. Da próxima, me levanto mais rápido.
Portanto, não se engane, a vida é uma sucessão de trombadas, e a palhaça aqui aprendeu a dar cambalhotas.
Ser ridícula ou ser patética? Se o "amor é o ridículo da vida", sou ridícula.
Ser patética é esperar que alguém me ame por meu amor ainda não ter terminado, me humilhar mendigando um carinho forçado, fazer o objeto do meu amor sentir pena de mim e me oferecer a última gota do meu próprio veneno, aquele que vai matar em mim qualquer possibilidade de me respeitar. Definitivamente, patética, não fui, não sou, nem serei, mesmo.
E entre quebrar o salto e descer do salto, prefiro quebrar. Um bom sapateiro resolve um salto quebrado. Já descer do salto, diminui a estatura.
Como sou bastante alta por dentro...

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

PALCO

O grande barato de ser atriz, ou de ter sido, é poder viver outras vidas. Melhor, poder criar outras vidas, participar de outras histórias que não sejam a minha.
Mesmo que vivesse 1.800 anos, jamais conseguiria experimentar tantas emoções, enfrentar tantos perigos, ser mil, ser tantas, ser outra.
O ofício do ator é dar corpo e voz as palavras do autor, é, também, sentir e pensar como a personagem.
Uma personagem é construída pelo que diz, pelo que as outras personagens dizem dela, pelo contexto da história, pela busca do conhecimento dessa vida, pelo entendimento e aceitação dessa pessoa que pode ser antagônica. É emprestar nosso corpo e voz para que ela se materialize.
O ator é, um pouco, deus, mesmo que em minúsculas. Cria, constrói, inventa, tenta, molda.
Como uma cebola, ao contrário, vai acrescentando camadas. Uma a uma. Coloca emoção, constrói uma história prá apoiar essa vida que será contada, inventa um passado que possa servir de base a esse ser, tenta se colocar em seu lugar, se molda, se coloca disponível para que essa personagem possa se manifestar, não julga suas ações, empresta seu corpo e suas emoções prá que ela seja, enfim, de carne e osso.
Ser ator é ser mágico, equilibrista, domador, trapezista. É ser todas as dores e alegrias, todos os risos e todas as lágrimas. É viver o inimaginável e, ainda assim, se fazer acreditar.
Que outra profissão permite que você saia de si? Perca o autocontrole e ache o outro?
De tanto viver outras vidas, passa a entender a sua, enxerga em cada história da vida real uma riqueza, mesmo que, aparentemente, seja uma vida banal. Nenhuma é.
De tanto ouvir o que os autores querem dizer, começa a perceber outras possibilidades, outros ângulos e treina a percepção do outro. Enriquece a própria vida.
Aceita a diferença, encontra o tom na peça e na vida, desenvolve a sensibilidade, controla seu tempo interior, respeita o espaço do outro, se coloca em risco e se resgata, ou é resgatado.
Algumas vezes é dolorosamente incômoda essa profissão, principalmente quando a trajetória da personagem se mistura a nossa, alfineta nossa memória emotiva, chacoalha e ultrapassa o limite que nos impomos. Ainda assim, prevalece a personagem, muitas vezes com posição contrária a nossa, nos ensinando a respeitar a visão do outro, mesmo que não concordemos.
Outras vezes, lutamos contra as evidências colocadas por elas, buscamos um desvio prá aproximá-las do que somos, tentamos facilitar nosso caminho, mas elas nos puxam as rédeas e nos recolocam no caminho delas.
A ficção tem que ter sentido, mesmo que não aceitemos. Ela tem começo, meio e fim escritos, acabados, determinados. Nada vai acontecer diferente do que está lá. Diferente da vida real, onde não sabemos o que vem depois, onde nada pode ter sentido, onde só podemos esperar o que vai acontecer e reagir ao acontecimento.
Esse é o mistério da vida, ficção não tem mistério, tá tudo lá, você sabe o que será, mas a mágica é caminhar sobre os pés da personagem, visitar emoções diferentes, histórias impossíveis, viver uma pessoa incomum, ser bandido, herói, santa, prostituta, se afastar da sua realidade e, por algumas horas, brincar de sair de si e passear em outra vida.
Honestamente, nada se compara a isso.
Nenhuma personagem é igual a outra, pode ser parecida, mas tem sua própria história, seu passado e temos que trazer sua bagagem até o momento em que a representamos.
É louco esse negócio de ser ator, embaralha suas crenças, mexe com arquétipos, derruba suas defesas, desafia seus medos, desperta emoções que, talvez, não queiramos acordar. Acrescenta, às suas experiências, mil anos vividos através de mil vidas.
O que sou, devo à minha profissão.
Sei que muitas pessoas acham que o ator representa sempre, não sabem se estão, de fato, mostrando quem são ou se estão representando um papel, em outras palavras, fingindo. Fernando Pessoa já disse tudo sobre o fingidor. Bom, elas nunca saberão com absoluta certeza e quem sou eu prá desfazer a intriga, pelo contrário, quero mais é que duvidem. Não ter nenhuma certeza é melhor do que acreditar no visível.
Não creia no que vê, procure enxergar o invisível, tente entender o subtexto, nem sempre o que é dito é o que se sente, na ficção e na vida real. Não decore o papel, improvise, deixe o sangue ferver, retese os músculos, respire fundo, invente, recrie. Seja protagonista da sua história.
Afinal, não é isso que somos? Atores representando um papel, usando uma máscara social?
Nosso palco é a vida e depende de nós escolher a máscara que se vai usar, a da tragédia ou a da comédia.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

SALVANDO O DOMINGO

Domingo é dia de preguiça, dia de procurar o que fazer e, na maioria das vezes, fazer besteira.
E lá estava eu, bestando às onze da manhã, tomando café no sujinho com o amigo de sempre.
Olhávamos em volta, buscando assunto, tentando preencher o silêncio.
- Olha lá, aquela ali.
- Qual?
- Aquela de óculos escuros.
- Aquela de verde?
- É, coitada.
- Por que, coitada?
- Deve ter passado uma noite de cão, não aguenta nem encarar a manhã.
- Ou chorou a noite toda ou não teve forças prá tirar a maquiagem. Deve estar com olheiras de noite mal dormida.
- Ou, se não tirou a maquiagem, deve estar com cara de urso panda.
- Tô achando que levou um pé na bunda.
- Pode ser, mas que viveu intensamente a noite passada, lá isso viveu.
- É. Melhor um pé na bunda que nada.
-É.
Silêncio. Sopro o café prá esfriar um pouco. Odeio extremos, muito quente, muito frio, muito ou pouco qualquer coisa.
Meu amigo suspira e pede um croissant com muita manteiga.
- Para de entupir as veias com gordura.
- Se não entupir com gordura, vou entupir com o que?
- Você tá precisando de exercício, melhora o astral.
- Falou a rainha da academia.
- Sério, ajuda.
- Se ajudasse, não estaríamos aqui, matando o que nos mata.
- O tempo.
- É.
Silêncio.
- Reparou naquele cara de terno?
- Às onze da manhã de um domingo?
- Deve ser algum segurança.
- Ou vai a algum evento importante.
- E passa, antes, num sujinho prá tomar café?
- Pode ser.
- Não pode, não. Definitivamente, trabalha em segurança. Ou vai trabalhar, ou acabou de sair do plantão.
- Talvez. Agora ele vai prá casa, tirar o terno, botar uma bermuda e um chinelão e sentar na frente da televisão até cair no sono.
- Isso se as crianças e a mulher deixarem.
- Por que não deixariam?
- Porque é domingo, dia consagrado à família.
- Dia de descanso.
- Dia de lazer.
- Dia de curar ressaca.
- Dia de merda.
- É.
O tempo passa, lentamente, em silêncio.
- O que você vai fazer, hoje?
- Sei lá. O de sempre. Ler o jornal, almoçar por aí, voltar prá casa, ler um livro.
- Acho que vou pegar um cinema.
- Domingo?
- Não?
- Se você quer chateação, é um bom programa. Fila, sala cheia, pipoca, barulho de papel de bala, celular. Boa escolha.
- É. Acho melhor, não.
- É.
- E praia?
- Socorro!
- É, tem criança espirrando areia em volta, cachorro, churrasquinho, frescobol.
- Uma corrida de obstáculos.
- Uma chateação só.
- Prá que existe domingo?
- Prá gente pensar na vida.
- Ou prá pensar na vida que os outros levam.
- Ou prá inventar uma vida para os outros.
- Ou prá ficar falando besteira.
- Entra domingo, sai domingo, e a vida continua igual.
- Queria me apaixonar.
- Você e a torcida do Flamengo.
- Junto com a do Corintians.
- Pois é. Vai sonhando.
- Eu poderia me apaixonar.
- E eu poderia ganhar o Nobel da imbecilidade.
- Cruzes, você, realmente, se leva a sério.
- Né, não?
- Tem razão, você é um imbecil.
- Obrigado. Concordamos em alguma coisa.
- Acho que vou dar uma caminhada, respirar, suar.
- Excretar a cana da noite passada?
- Nem bebi.
- Nem um pouco?
- Nada.
- Tá explicado.
- O que?
- O desânimo.
- Bebida não me anima.
- Mas anestesia.
- Parece um alcoólatra, falando assim.
- Melhor um alcoólatra conhecido que um alcoólico anônimo.
- Não tem graça nenhuma.
- Eu sei.
- Vamos lá prá casa, eu preparo uma macarronada e vemos uns filmes.
- Tá doida? Teu macarrão é "unidos, venceremos" e teus filmes são umas xaropadas europeias. Tô fora.
- Então, tá. Passa o domingo gemendo, resmungando, praguejando.
- Vou à missa.
- Você é ateu!
- E você é à toa.
- Cretino!
- Rabugenta!
- Cínico!
- Mal amada!
- Ai, Deus, o que seria do domingo sem você na minha vida?
- Um tédio.
- Continua um tédio, mas com você.
- Só por essa declaração, eu vou prá sua casa, mas eu cozinho e, enquanto você vê seus filminhos, eu tiro um cochilo no sofá.
- Vai parecer um casal de meia idade.
- A não ser que você queira algum benefício extra.
- E se eu quiser?
- Vou ser seu objeto de prazer.
- Convencido. Quem disse que você me dá prazer?
- Se não dou, você sabe fingir bem.
- Então, vamos lá, tentar aproveitar esse dia.
- Salvar o domingo.
- Ainda acabo gostando desse dia.
- Prometo dar o melhor de mim.
- É melhor dar mesmo, prá fazer valer a amizade.
- Todo domingo é a mesma coisa.
- Ainda bem que somos amigos com benefícios.
- Salva a secura da semana.
- Seu Zé, fecha a conta.
- Que o domingo tá fechado!

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

SER X TER

Ando sofrendo de um terrível sentimento de exclusão.
Não saberia determinar quando esse mal começou, sei que estou contaminada e não sei o que fazer.
Percebi que, quando estou entre amigos, não consigo me encaixar no grupo, não sou capaz de acompanhar a conversa. Minhas opiniões não são relevantes, sequer entendo sobre o que estão falando.
Pouquissimas pessoas deste círculo prestam atenção em mim, pra falar a verdade, acho que nenhuma.
Pertenço a uma classe decadente, a das pessoas que valorizam ser ao invés de ter.
Não sei ser rasa, superficial, às vezes peso a mão, eu sei. Peso quando aprofundo a discussão sobre, por exemplo, Louboutin ou Manolo. Entendo que os pés que calçam um ou outro, são simplesmente pés que sustentam um corpo imbuído de intelecto, pele, ossos, músculos, um ser que se sustenta sobre dois pés, que evoluiu, que pensa e decide. Entedio os outros porque a discussão é sobre valor de mercado e não sobre valor essencial.
Não sei nada sobre valor agregado, capital de giro, mercado de luxo, sei que a grande questão é o que fazer com as pessoas que não se importam em usar uma roupa qualquer, sem levar em conta sua grife.
Roupa é pra proteger a pele do calor ou do frio e a sociedade da nudez que poderia afrontar.
Aí, inventaram que o poder está em ter marcas caras e visíveis. Pra isso colocaram etiquetas, logos, símbolos que demonstrem o poder econômico.
E é um tal de Chanel pra cá, Dior pra lá, Louis Vuitton, Versace, quanto mais grifado o closet mais importante o proprietário dos penduricalhos. E são, simplesmente coisas, não determinam as pessoas, ao contrário, esvaziam as possibilidades de ser. É aí que fico inconveniente, que me torno inferior.
Não tenho closet, tenho armário, não tenho grife, tenho roupas confortáveis, algumas atuais, que me vestem, não carrego a compulsão de aparecer pelo que uso, sou e é isso que me importa.
Alguns diriam que sou assim porque não posso bancar luxos supérfluos, mas já pude e, nem assim, pagava pela vitrine que podia mostrar. Sempre ouvi que dinheiro não aceita desaforo e acho um desaforo classificar as pessoas pelo número de grifes que carregam no corpo.
Hoje em dia, se você não tem um carro imponente, uma casa montada pelo mais caro decorador, roupas exclusivas e caras, enfim, um exterior de dar inveja, você é um zero à esquerda.
Você se mata de trabalhar (em algumas "profissões", roubar), prá fazer parte dos grupos de destaque, pertencer a "alta roda", ser visível pelo que tem.
Deixe que eu me apresente: não sou rica, não me endivido prá mostrar a sola vermelha do meu sapato, penso (logo, existo), não discrimino nem julgo uma pessoa pelo que veste ou pelo que tem. Gosto de gente que me estimule o raciocínio, que troque conhecimento, sabedoria, cultura, que não tenha o olhar viciado em estereótipos, que procure arrancar do, aparentemente, nada, uma partícula de personalidade, de individualidade (no bom sentido), que se destaque da manada.
Você nada é sem ser. Ter não vai fazer diferença, se você não for. Ser é definitivo, ter é transitório.
Não tenho nada e quando me for, nada é o que vou levar.
Em compensação, quando a velha senhora me pegar a mão, deixarei o que fui, o que disse, o que plantei, o que pensei.
Não posso mudar a maneira de pensar dos "amigos", eles são materialistas e se reconhecem pelo que têm. Não deixo de gostar deles pelo que são, mas, quando nos reunimos, sinto essa terrível sensação de exclusão, por não ter os bens que eles acham que é importante, por ser diferente, ser gauche, como dizia o poeta, por não poder aprofundar um bom debate, por não ser entendida. Acho que eles me vêem como uma pessoa excêntrica, o bichinho de estimação deles, a pobrezinha que só consegue usufruir os prazeres da vida através deles, uma pequena obra de caridade dessa fraternidade.
No fundo, acho uma pena eles não usarem o poder do dinheiro pra melhorar suas perspectivas, comprar livros e instrução, obras de arte, apurar o olhar, enxergar que tudo o que, realmente, pertence à eles é a soma do que cultivam dentro de si, que o ter, é simplesmente o que podem comprar e acumular. Eles poderiam se tornar decoradores de seus interiores.
Sou inferior em posses, sou tremendamente inferior em bens aparentes, mas tenho outras prioridades, tenho alguns bens que acumulei: livros, que me ajudaram a preencher e saciar minha ignorância, filmes que me sensibilizaram e me mostraram outras possibilidades, pessoas que me ensinaram a ser e pensar diferente, pessoas que servem pra somar, nunca pra excluir.
As grifes vão continuar dominando mas jamais poderão superar um ser que é, independente do que aparenta ser, por não poder ter.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

NARCOLEPSIA

- Vou te pedir um favor.
- Fala, coração.
- Prá começar, tenho nome, odeio essa coisa de " docinho, amor, benzinho".
- Não sabia, desculpe.
- Agora, já sabe.
- Não vou dar mais apelidos carinhosos mas, depois, não reclama.
- Se eu quiser reclamar, reclamo, sim.
- Credo, que bicho te mordeu? Acordou do lado errado da cama?
- Acordei com dois pés esquerdos e não enche o saco que eu nem tenho.
- Qual é? Tá de TPM?
- Tô, mas é Tensão Pós Matrimônio.
- Mas nós não somos casados!
- Exato.
- Não entendi.
- Parece que estamos casados há séculos!
- E... lá vamos nós. Despeja, vai.
- Tá vendo? É disso que eu estou falando.
- Filha de Deus, me dá uma pista, não tô entendendo nada.
- Não conversamos mais, não namoramos mais, agora tudo é menos.
- Mas não é assim mesmo? Com a relação mais estável, a gente relaxa e acalma.
- Acalma, nada, entra no piloto automático.
- Tá bom, o que você quer?
- Não se trata do que eu quero, não quero nada.
- Peraí, fiquei perdido.
- Novidade.
- O que você quer dizer com isso? Que eu sou sem noção? É isso?
- Tô dizendo que você precisa de um GPS prá te mostrar onde você está!
- Tô aqui, em pé, na cozinha, com você, porra!
- Tá vendo? Você é literal e se irrita com qualquer coisa!
- Para com os rodeios, diz logo qual é. E quem tá irritada é você.
- É você!
- Eu o quê?
- Lembra o que você fez, ontem à noite?
- O que eu fiz?
- Não lembra?
- Pelamordedeus. Eu lembro que cheguei antes de você, tomei banho, liguei a televisão enquanto te esperava, vi um jogo qualquer e você chegou.
- Depois, tô falando de quando eu já estava em casa, não me interessa o que você fez antes, mas depois, DEPOIS!
- Não grita que eu não sou surdo.
- Mas só ouve o que quer.
- Olha só, se você quer me acusar de alguma coisa, fala logo. Não vou ficar tentando acertar a loteria.
- Enquanto EU preparava o jantar, EU dava um jeito na casa, EU servia a mesa, EU lavava a louça, você cochilava no sofá!
- Tava cansado. É crime?
- Cansado do que?
- Cacete, trabalhei o dia inteiro.
- E eu? Ah, é, tinha esquecido, seu trabalho é mais importante do que o meu.
- Isso tudo é porque cochilei?
- Não, isso você faz todo santo dia.
- Isso o que? Cochilar ou essa outra coisa que não sei o que é?
- Essa outra coisa, cochilar só desencadeia o processo.
- Desisto. Ou você desembucha, ou paramos por aqui.
- Paramos o que? A conversa ou a relação?
- Tudo tem que ter dois lados, ou isso ou aquilo? Não dá prá ser mais simples?
 Facilita aí, vai.
- Facilito, sim. Lembra que eu disse que ia te pedir um favor?
- Quando?
- Hoje, agora. Antes de dizer bom dia.
- Você não deu bom dia.
- Pois é, meu bom dia foi "vou te pedir um favor". Na realidade, não vou te pedir nada, vou é dar uma ordem.
- Como disse? Você vai me dar uma o que?
- ORDEM!  Tem mais, ou você acata ou roda.
- Tô com a sensação que vou rodar, porque nem minha mãe me dá ordem. Mas, diga lá, só prá conferir.
- Digo, sim, e preste bastante atenção: quando estiver muito cansado, o que vem acontecendo com frequencia, não encoste sua arma engatilhada em mim.
- Tem a ver com transar comigo?
- Tem a ver com transar e você pegar no sono.
- Quer dizer que não posso dormir depois de transar?
- Não pode dormir é DURANTE e EM CIMA de mim!
- Tá bom, eu fico embaixo, assim você não reclama.
- Tem toda razão.
- Não tenho?
- Tem, meu caro. A porta da rua é a serventia da casa. RODA!


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O PATO E A FORMIGA.

Pato!
Finalmente, descobri a origem do homem.
Não estou me referindo a raça humana, falo do gênero masculino.
Alguém já reparou que o homem espirra água prá todo lado?
No banheiro, por exemplo.
Quando escovam os dentes, o espelho recebe as rebarbas de água com pasta de dente.
Ao fazerem a barba, o entorno da cuba fica ensopado de creme de barbear, pelos e, claro, água.
O chão, também, recebe seu quinhão quando lavam o rosto ou as mãos.
Chuveiro é pouco prá reter a água do banho, sobra sempre para o lado de fora, de preferência, fora do tapete.
Até o vaso sanitário parece pequeno prá eles, pinguinhos esguicham para fora do limite e gotejam direto para o chão.
Tem coisa pior na vida do que entrar no banheiro após ter sido usado por um homem?
Às vezes, tentam nos ajudar com a louça que se avoluma na pia. Começam lavando a louça e terminam escorregando nas poças que se formam no chão da cozinha.
A pobre da pia vira uma lagoa prestes a transbordar.
Parece que não têm percepção do rastro que deixam, que são cobertos de penas impermeáveis, é só se sacudirem que ficam secos e o que estiver em volta encharcado.
Quem não tem um espécime em casa? Seja pai, marido, namorado, colega, algum deles já passou em nossas vidas.
Não há coisa mais irritante do que ter que secar as enchentes sempre que se aproximam de qualquer coisa líquida. É como enxugar gelo. Você vira as costas e, pimba, lá vamos nós, de novo, limpar a lagoa que o patinho deixou.
Depois de extensa pesquisa, exaustiva análise, estudos avançados, cheguei a conclusão que o gênero masculino é desprovido de sensibilidade à água.
Eles até tocam nela, mas ela bate neles e é repelida como se batessem em vidro, escorre ou se espalha sem que o dito cujo perceba a tsunami que provoca.
Uma amiga diz que é porque o homem tem quem limpe sua sujeira, que é cultural. A mulher se dispõe, desde priscas eras, a cuidar da casa e do seu animalzinho de estimação.
Vem cá, se eu tivesse um animal prá cuidar, com certeza seria um de quatro patas, não uma ave de duas.
Reparem bem, o pato sempre se sacode e espalha a água ao seu redor, já que suas penas não as retém.
O pior é que não há jeito de treinar o patinho, seu cérebro não registra "não espalhar água". É tarefa impossível!
Quando leio que água é um bem finito, que há que se economizar, que vai faltar, que o desperdício vai acabar com ela, tento fazer minha parte. Mas de que adianta tanta preocupação se, ao entrar no banheiro, vejo exatamente o contrário. Se quando olho prá pia e para o chão vejo litros dela se espalhando, à toa.
Tenho pesadelos, sonho que vou acordar e estarei boiando na piscina que se tornou minha casa.
E acordo gritando: "olha a água!".
Comecei a desenvolver a "síndrome de final de semana". É quando o trabalho triplica, porque eles vão ficar mais tempo em casa, consequentemente, mais água prá secar.
Sexta feira já começo a rezar prá que aquilo termine logo.
E se reclamo, ainda sou implicante. Mas se não limpo sou relaxada.
Trabalho só aparece quando não é feito. Se você mantém tudo limpo e organizado, não tem do que reclamar. Só que as coisas não se fazem, são feitas.
A roupa não se limpa sòzinha, alguém as lava. As camas não são feitas quando você pisca os olhos e o pó não desaparece quando mexe o narizinho.
Casa é trabalho eterno e desgastante porque, além de não ser valorizado, não aparece quando é feito.
E essas avezinhas, tão bonitinhas, são as maiores causadoras do stress.
Na outra encarnação quero ser "pato".
Cansei de ser formiga.



terça-feira, 19 de julho de 2011

APRENDIZ

Apague a luz. Deite ao meu lado.
Hoje eu vou guiar teu desejo. Você vai procurar o meu.
O único sentido que não vamos usar é a visão.
Vamos ser cegos por algumas horas, buscar os outros quatro sentidos que achamos que usamos entre nós.
Comece lendo meu corpo nas pontas de seus dedos. Desvende meus poros, sinta meus pelos, percorra meus braços, meu ventre, meu rosto. Sinta em minhas costas o caminho que vai do pescoço até o cóccix. Sabia que tenho covinhas em minhas ancas? Tente gravar o que seu tato lê.
Segure minha mão, meus seios, apalpe meu quadril, aperte meus braços, minhas pernas, sinta.
Agora, apure o olfato, como um animal, me cheire. Cheire meu pescoço, minhas reentrâncias, cheire o ar que se desprende de mim, perceba o aroma que só eu tenho.
Eu sei o seu. Você cheira a mato, a folha que recém caiu, cheira a terra depois da chuva.
Qual é o meu? Descubra.
Ouça. Me ouça. Qual a frequência dos meus suspiros, meus gemidos, quantos decibéis têm meus gritos?
Entro no seu prazer pelo som? Você entra no meu pelo riso alto, pelo som gutural. Você cerra os dentes e deixa passar o ar entre eles, como um assovio.
Prove meu gosto, desenhe com a língua seu nome em minha pele, escolha o lugar. Sinta o sal que tenho no suor e o sabor adocicado de minha seiva. Conheço teu gosto agridoce quando o prazer explode. Detenha-se, conheça, explore.
Faço com você o que nunca fiz, permito que me conheça.
Quando apagamos a visão, entendemos o que o outro quer. Essa é a grande vantagem dos cegos, enxergar além do que os olhos vêem. Porque ver e enxergar são duas coisas distintas.
Ver é captar a imagem, enxergar é entender o que vê. Na ponta dos dedos se enxerga melhor.
Ouvir, também, é diferente de escutar. Escutar fica na superfície, ouvir é mais profundo. Escuto qualquer coisa, ouço o que me interessa.
Comer não é degustar. Como prá sobreviver, degusto o que me dá prazer. Prove meu sabor.
Propus essa expedição porque  quero que você conquiste seus sentidos, anule a razão e se perca na intensidade do desejo, não só físico.
Não facilite a entrega, não apresse o gozo, não menospreze o prazer. Prolongue o desejo.
Caminhe na ponta dos dedos, libere o tato.
Defina o perfume que exalamos, juntos, use a memória olfativa.
Tenho lembrança de outros perfumes, gravei o teu.
Onde estiver, com ou sem você, vou lembrar do teu cheiro.
E o gosto? Posso provar milhões de sabores, o teu será único.
Quero que você me descubra e me faça especial.
Você vai se lembrar de mim, vai sentir que não me visitou, viveu em mim.
Vai me associar a cheiros que virão de fora, maresia, terra molhada, alguma fruta, qualquer flor.
Vai me ouvir no som do rio correndo, da onda batendo, do vento uivando ou do que me represente em sua memória.
E sua lingua vai guardar o gosto que só eu tenho e só você sabe qual é.
E quando sua sensibilidade estiver apurada, talvez eu te mostre um caminho que só as mulheres conhecem, a intuição.
Mas o sexto sentido só vai aflorar quando todos os outros puderem ser usados sem treino, espontâneamente.
Porisso, vamos às aulas, comecemos do início.
Tente ser um aluno aplicado, o que estou ensinando não é só prá mim, é prá depois de mim, também.
No escuro, você vai entender o que significa estar com quem se quer.
Vem, me dê sua mão. Apague a luz.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

HOJE

Desculpe, mas não vou recomeçar.
Prá que? Já sei onde vou parar e, cá entre nós, recomeçar é insistir, procurar motivos para acreditar que é possível mudar a história.
Prá que isso acontecesse, seria necessário trocar as personagens, o cenário e aí já seria uma nova história.
Desisti de me ferir esperando por você.
Eu, que tenho uma vida, estaciono, esperando que você decida que vida quer viver.
Pura perda de tempo, energia e sentimento.
Enquanto eu amo, você se debate em dúvidas.
Não acredito que se tenha dúvida sobre amar ou não, alguém.
Não é possível intelectualizar um sentimento, é incontrolável.
Acredito que medos, inseguranças, possam brecar a entrega mas duvidar, não, não é possível.
Posso não querer estar com aquela pessoa, entender que vai me fazer mal, não querer arriscar, não confiar, recusar. Mas duvidar? Não!
Sei que não posso ter a certeza de que o amor dure prá sempre, mas não duvido do amor que sinto, hoje.
Sei que as pessoas mudam, prá melhor ou pior, e que isso desequilibra a relação, mas começar sem confiar? Não, não quero isso prá mim.
O que eu tenho prá viver é o que sou, hoje. Amanhã é outra página.
Não posso deixar minha vida prá amanhã,  porque ele não existe. Hoje é o amanhã de ontem.
Você esperava que eu mudasse e me tornasse seu apêndice, que concordasse em apagar meus desejos e vivesse os seus. Até tentei me anular, mas não seria eu e sim você, duplicado.
Tentei ser seu espelho, mas não consegui apagar a minha imagem, é mais forte que eu. Insisto em respirar por mim, enxergar por mim.
E o que tenho enxergado de você, desculpe, não me agrada.
Não me agrada bancar a serva de um tirano, de um vampiro, que suga a minha sede de viver.
Ainda acredito em transformações, em mudanças, acredito que posso me mudar, transferir meu amor. Trocar o quarto apertado em que você quer me trancar e achar o jardim que mereço.
Respirar. Inalar e exalar. Oxigênio.
Sair da solitária e encontrar a claridade que preciso.
Amar não basta, te amar, já não basta. 
Feliz ou infelizmente, luto prá não cair na sombra de ninguém.
Sua vida é muito pequena prá comportar mais uma pessoa dentro dela. Não haveria lugar prá mim. Existir demanda espaço prá crescer. Não devo me apequenar prá estar com você.
Dizem que só os idiotas são felizes, acho que nunca vou ser, tenho uma cabeça que raciocina e nem penso em descartar essa vantagem.
Viver, no final, é isso, a eterna busca da felicidade e, geralmente, ela não está onde a gente quer.
Mas não aceito ser infeliz amando uma pessoa. Amar é querer que o outro seja feliz com a gente, é buscar pontos de encontro entre duas pessoas diferentes. Quando um começa a querer mesmerizar o outro, acaba o amor e vira outra coisa, posse, domínio, jugo. Não vou deixar que aconteça, não quero, não mereço.
Achei que queríamos trocar, somar, construir uma relação. Eu quis.
Estou saindo da sua vida, despejando minha dor, reencontrando a mim mesma.
 O que não me mata, me fortalece.
Tijolo à tijolo, vou construir meu alicerce.
Sinto ter que abortar uma esperança, outras virão.
Sinto ter acreditado, ter confiado e me desiludido.
Mas faz parte do aprendizado.
Sinto, por último, ter te conhecido e investido um tempo precioso numa existência vazia.
Ontem você era meu amanhã, hoje você é meu ontem e, ontem, não volta.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

UNIDUNITÊ

Só prá lembrar, a vida é muito injusta.
Quando nascemos somos uma página em branco. 
Vamos marcando essas páginas com o que aprendemos, escrevendo nossa história, desenhando nossos caminhos. Quando possível ou necessário, alterando roteiros.
Crescemos tentando abrir os olhos e mentes, tateando entre o certo e o errado, buscando a felicidade, aprendendo letras, números, códigos, regras, aplicando o que apreendemos, descartando o que parece inútil. Escolhendo.
Vivemos assim, fazendo escolhas sem saber, intuindo.
Mas, quer saber? Elas são definitivas. E, nem sempre, são as certas.
Elas nos fazem tomar um rumo que só vai se revelar lá na frente, onde não é mais possível voltar atrás.
São infinitas as possibilidades, tanto de erros quanto de acertos. Mas se não optarmos, não saímos do lugar confortável em que estamos e que não nos leva a nenhum outro.
Escolhas são difíceis mas necessárias. Elas deslocam o ar e empurram nosso destino.
Ouvi, não sei onde, que nascemos com uma sina e fazemos nosso destino. Entendi que, se nasci com a sina de ser o que não consigo ou não quero ser, cabe a mim modificar o trajeto.
É mais fácil dizer, sou assim e pronto, quem quiser que me aceite, difícil é ser responsável pelo que fizemos de nós. Nossas escolhas nos definem.
Minha vida é responsabilidade minha, de mais ninguém. Não devo culpar o outro pelas minhas escolhas, nem dividir o ônus do erro que, por acaso, cometa.
Minha contabilidade, entre deveres e haveres, só diz respeito a mim, como administro minha passagem por aqui é problema meu.
Porisso, não entendo nem aceito quem deposita sua existência na conta do outro.
Quanto mais avanço em idade mais definida fica a resposta que busco.
Não posso dizer que me conheço profundamente, há dobras em mim que, ainda, não percebi. Me surpreendo com sentimentos e reações que não imaginava que existissem em mim. Mas, também nesses momentos, avanço em conhecimento e capacidade de entender, aceitar ou transformar. Tudo é lucro a essa altura da vida.
Vida: livro sempre repaginado, editado diariamente, reescrito a cada instante e, principalmente, assinado por quem a vive.
Tenho minhas digitais imprimidas em toda a minha história, nunca, ninguém decidiu por mim, podem ter, talvez, orientado a tese mas a prática quem escolheu fui eu, a argila foi moldada por mim e pela obra, me responsabilizo.
Sei que não é um caminho fácil, na maioria das vezes é insano ter que optar, mas vou sempre decidir pelo que eu considero acertado e bancar o escolhido. Da mesma forma que não aceito ser responsável pelo vizinho, não me permito jogar nas costas de quem quer que seja o que eu escolher.
Não serei jamais a pobrezinha, vítima de outra pessoa, estranha ao meu destino.
Se não posso controlar o que me acontece, posso aprender com o acontecido.
Se não tenho como fazer quem eu quero me amar, vivo a perda, o luto e aprendo a escolher melhor.
Não posso impor ao outro minhas escolhas, devo ser coerente com elas.
Se me dizem que estão confortáveis com sua vida e se esse conforto atrapalha a minha, opto por mim.
Porque, no final do dia, é comigo que tenho que me entender.
Viver não é um parque de diversões mas não é, também, um circo dos horrores.
Pedras, tropeços, furacões, dilúvios, tudo é parte da existência.
Arco íris, amanhecer, sol, também.
Perder e ganhar, amar e sofrer, rir e chorar, sonhos e pesadelos.
Aprender. Acreditar. Valorizar.
Perceber o abismo, desviar ou cair?
Escolher.
A vida é injusta porque quando podemos, finalmente, usufruir o que aprendemos, ela acaba.
Mas é isso ou nada.
Prefiro uma vida injusta e responsável a outra vida qualquer.
Mas prá isso é preciso escolher, desde a roupa que vou vestir, o prato que vou comer, até a pessoa com quem quero estar.
E, dentre todas que conheço, escolho estar comigo. De preferência, de bem comigo.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

E NA BUNADA NÃO VAI DINHA?

Tire o refletor de mim, eu confesso!
Sou uma viciadinha à toa, sou fumante.
Mas criminosa, perá lá, não sou.
Me infernizam a vida porque sou adicta de uma droga legal. Aceito. Melhor dizendo, engulo.
Mas não vou aceitar a hipocrisia das patrulhas que se dizem politicamente corretas.
Hoje, o cigarro se tornou a droga mais mal vista do planeta.
Vamos aos fatos.
Compro meu vício, legalmente, pago os impostos que me cobram por ele, faço isso à luz do dia e, mesmo assim, sou tida como um ser que não tem força de vontade prá largar uma coisa que faz mal e mata.
Não sou idiota, sei que o cigarro é uma droga letal, sei que prejudica o outro, sei que não devo incomodar os não fumantes com minha fumaça perniciosa, sei de tudo isso. Mas sei que álcool, que também é legal, é tão destrutivo quanto o fumo, ou mais.  Mas a cervejinha é liberada, é uma droga social.
O cigarro não me tira a capacidade de trabalho, não interfere nas relações,( se eu não fumar perto de quem não tolera), não prejudica o meu desempenho em nenhuma esfera. Ao contrário do álcool. A droga social acaba se tornando desagregadora. Quantos álcoolatras destruiram suas carreiras, suas famílias, sua vida? Quantos fumantes fizeram o mesmo? Nenhum. O fumante destrói sua saúde, não destrói a vida dos outros.
Quer dizer que descriminalizar o usuário de maconha pode, e sou totalmente a favor, entendo que doença deve ser tratada e não estigmatizada, mas o fumante de cigarro é tratado como vilão?
Tem alguma coisa errada nessa história!
Não faço apologia, não incentivo ninguém a se tornar fumante, não ofereço o primeiro cigarrinho viciante, não estimulo o vício enaltecendo as maravilhas que ele proporciona, ao contrário dos traficantes que oferecem a porta de entrada, gratuitamente, para fidelizarem suas presas.
Tô de saco cheio da hipocrisia geral!
O governo quer me ensinar como se vive, dizendo o que é certo e o que é errado. O certo, prá mim, é o que a lei permite. Errado é a corrupção, os roubos do dinheiro público, os desvios que políticos sabem tão bem fazer da verba prá saúde, educação, programas sociais.
Mas, sabe como é, quando flagrados com a mão suja, ou é uma briga política ou, então, é delírio dos outros, isso nunca existiu, embora as provas mostrem o contrário. No final, todos se safam e a gente entuba.
Os viciados em drogas ilegais, coitadinhos, são vítimas dos traficantes, não levando em conta que são eles que alimentam a roda do tráfico, que os traficantes só existem porque eles compram a mercadoria que vendem, e depois vêm fazer passeata pela paz! Dá um tempo!
Neguinho é contra a pena de morte, mas a favor do aborto. Igreja é contra o aborto e homossexualismo e abriga pedófilos, abafa desvios de conduta. Quantos filhos de padre existem por aí?
Trabalho escravo é proibido, e daí? Velhos, alguns não tão velhos, coronéis da política ainda mantêm a prática em suas fazendas compradas com o suor do povo. Mas eles podem. Trabalho infantil também é proibido, mas quem vai fiscalizar? Só quando aparece uma denúncia. A imprensa corre prá relatar e, dias depois, aquele jornal já virou banheiro de cachorro. Sujam de fezes a dignidade.
Tem os contra a matança de animais que não dispensam um filé sangrento. Os que são contra maus tratos mas não recolhem a sujeira que seu animalzinho deixa prá outros pisarem. Afinal, o animal é o dono que não respeita o espaço público, passa a responsabilidade aos garis. Os que mancham de tinta casaco de pele mas sequer visitam um abrigo de animais. Tem os que recolhem dinheiro através de ONGs e usam em beneficio próprio. Conhece essa história?
Sei de alguns que se dizem despojados, que não se importam com roupas ou bens de consumo, mas não pescam seu peixe, vivem muito bem abrigados nas costas de papai e mamãe, não pagam para morarem, comerem, não sabem o valor dos impostos, taxas, nada. Por que não são coerentes e vão viver uma vida monástica? É fácil ter seu carro, sua gasolina, seu apartamento, suas necessidades nem tão vitais, supridas pelos outros, mas é hipocrisia.
A lista do politicamente correto é extensa, vastos são os interesses qua a engrossam, mas, do meu ponto de vista, tudo que é muito politicamente correto, engessa, criminaliza, aprisiona.
O que eu faço da minha vida diz respeito a mim. Se não faço nada ilegal ou imoral, onde estou errada?
Nada do que é imposto é, necessàriamente, cumprido. Mas como gritam!
Sou uma cidadã cônscia dos meus deveres e direitos, sei o que posso e o que não posso fazer.
Sou extremamente rígida em relação aos meus limites, sei que meus direitos terminam onde começam os direitos dos outros. Não roubo, não mato (só me suicido com o cigarro), não trapaceio, não finjo ser o que não sou.
Só queria que meus direitos, também, fossem respeitados.
Se você não gosta de beijar cinzeiro, não me beije. Não gosto de beijar boca com hálito de bebida, não beijo, pronto! Agora, me colocar a pecha de sem vergonha, me tachar de poluidora, de irresponsável, quando seus carros poluem o planeta, suas atitudes são incoerentes, aí não, né?
Se você pretende ser um imbecil politicamente correto, comece no seu quintal, só então terá discurso prá encher o saco do outro. Comece parando com a bebidinha, a maconha, depois recolha as fezes de seu animal, não jogue lixo no chão, ajude um ancião, um cego, visite orfanatos, casas de recolhimento, prisões, denuncie abusos, não compre nada que seja pirata, pague seus impostos, arrume um sustento, proteja quem necessita, venda o carro e ande em transporte coletivo. Quando, enfim, se sentir apto a defender, não seu interesse, mas o direito do outro, aí sim, estará pronto para pedir ao outro que tente modificar sua vida em benefício da coletividade.
Você verá que o buraco é mais embaixo, implica em respeito ao próximo, em ser exemplo.
Antes de querer me policiar, me mostre que eu não estou certa, me diga onde está meu crime.
Gritar não me convence, me humilhar não vai dar força ao seu argumento, porque ele é vazio.
Portanto, confesso, sou fumante, politicamente incorreta, como todos nós, mas não sou hipócrita.
Pimenta nos olhos dos outros será, sempre, refresco. 

domingo, 5 de junho de 2011

AGENTE 00.......

Waldyr. Doutor Waldyr.
O agente 001 da minha vida.
O primeiro homem a me tocar, a me ver nua, indefesa.
O homem que me trouxe à vida.
Foi ele o primeiro a me dar um tapa na bunda, a ter essa intimidade comigo.
O primeiro a me fazer chorar.
Foi, também, o primeiro que enfureci com minha demora em aparecer.
Atrasei nosso encontro por dois dias, longos e suados.
Ele precisou sentar sobre minha mãe pra empurrar e forçar a minha saída.
Eu estava dormindo, confortável, sem saber que me esperavam do lado de fora.
Ele era o médico de família de meus avós e, depois, de meus pais.
Em meados do século passado, essa profissão existia de verdade.
Pneumologista, em uma época em que a tuberculose matava.
Mas era um tempo em que a especialização não era fechada em nichos, tinha-se que saber clínica geral.
E ele sabia do seu ofício, por inteiro.
Taí a resposta que você queria, aquela pela qual você me bombardeava, sem piedade.
Quem foi o primeiro homem de sua vida?
Pois foi ele.
Agora, se quer saber quem foi o mais importante, esperando que tenha sido você, lamento informar que não foi. Não é.
Para que uma pessoa seja a mais importante na minha vida, há muitos requesitos a preencher.
Por exemplo: posso viver sem ela? Bem, vivo sem você.
Preciso dela pra existir? Definitivamente, existo sem você.
Ela é a razão da minha existência? Meu querido, ela é muito mais rica do que você imagina, seu poder de compra não chega perto do que ela necessita.
É meu ar? Meu chão? Meus sentidos? Minha luz? Meu motivo pra acordar todos os dias?
Você, com certeza, não é.
Não procure ser aquele que me faz falta, pois não faz.
Não tente me fazer sentir culpa pelas respostas que não posso dar.
Não dependo dos seus olhos pra me guiar, não dependo de sua mão pra me conduzir.
Não acredito que uma pessoa possa se anular, a ponto de depender do afeto do outro pra, simplesmente, ser.
Gostar não significa se despir de sua pele pra vestir a do outro.
Você, talvez, esperasse de mim uma rendição total, que eu dissesse que era a pessoa mais importante da minha vida.
Respondo que a pessoa mais imprescindível da minha vida sou eu.
Só eu me conheço profundamente, completamente.
Só eu me faço falta, me empurro, me afasto dos perigos, me entrego a mim.
Só eu me amo sem cobranças, sem medo, sem vergonha.
Quando tenho alguém ao meu lado, me divido com ele, mas não abro mão de mim.
Meu espelho sou eu, não me perco em outra imagem.
Portanto, não queira ser o fundador da minha vida. Deveria bastar estar com você, mas não esqueça que não sou sua. Sou minha e vou ser sempre.
O primeiro homem foi importante porque me ajudou a chegar à vida, mas isso não fez dele meu dono.
Os outros que tive foram importantes, em seu devido tempo.
Você está sendo, por enquanto.
Mas, entre o transitório estar e o definitivo ser, eu sou a pessoa mais importante em  minha vida.
Waldyr. Doutor Waldyr, foi o agente 001.
Eu sou  a 000.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

SALVE, RAUL

Provocada pelo blog de minha amiga Gotty, entrei na pilha que ela coloca: escrever sobre o que gosto e o que não gosto.
Bem, meu gosto foi mudando através dos séculos vividos, foi sendo apurado, desviado, trocado.
Mas acho que o propósito é falar sobre o gostar ou não gostar, hoje. Amanhã pode ser diferente, quem sabe?
Hoje, gosto de caminhar.
Ler.
Viajar.
Beijar, na boca de preferência. Beijo bem dado, é claro.
Vagabundear com amigos.
Jogar conversa fora.
Sexo muito bem feito, sem pressa.
Cachorros. Mas, confesso, já gostei mais.
Pipoca.
Sorvete de abacaxi.
Dormir quando o sono chega.
Acordar quando o sono acaba.
Frio.
Roupa confortável.
Banho quente.
Casa limpa e arrumada.
Armários organizados.
Perfume suave, em mim e na casa.
Velas.
Beatles.
Rock.
Dirigir em estrada.
Vento.
Céu estrelado.
Arco-íris.
Cajá-manga.
Gargalhada.
Estar só.
Aos poucos, vou lembrando de mais coisinhas que me fazem bem, mas, por enquanto, fico por aqui.
Agora, algumas que não gosto.
Barulho.
Sujeira.
Dependência, qualquer uma.
Cozinha e tudo que diz respeito à ela.
Pessoa carente.
Fofoca.
Depressão por perto.
Engarrafamento.
Beijo mal dado.
Sexo egoísta.
Fim de semana.
Chatos.
Gatos.
Répteis.
Maxixe, o legume.
Comida japonesa.
Despertador.
Roupa nova.
Banho frio.
Verão.
Axé, pagode, funk e afins.
Relâmpagos e trovões, mesmo sendo filha de Iansã.
Multidão.
Falsidade.
Covardia.
Vítima.
Puxa-saco.
Também, nesse caso, deixei de fora outras coisinhas.
É uma lista infindável, pensando bem.
Se sentir necessidade, volto e vou adicionando ou retirando itens.
Essa lista é o retrato do momento, resumidamente.
Mas gostar ou não gostar tem muito de amadurecimento, de entendimento, de experiência.
Talvez a próxima listagem seja completamente diferente, Raul Seixas já dizia:" prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo".
Eu, também, Raul, eu, também.

terça-feira, 17 de maio de 2011

REVANCHE

Olhe pra mim, com muita atenção.
Pensa que vou deixar você me derrubar?
Acha que pode me atrair e repelir quando quiser?
Por que se reaproximou, me reconquistou e me negou?
Poder? Vingança?
O que passava pela sua cabeça quando pretendeu me fisgar?
Quando nos afastamos, quando me afastei, tinha motivos que não importam agora.
Sei que você foi ferido, machucado, sei que é difícil ser deixado sem explicação.
Mas faz tanto tempo que achei que havia superado, que havia esquecido.
Aparentemente, não.
Vingança é um prato que se come frio. Você soube esperar e volta à minha vida pra se vingar.
Tenta me pegar em um momento em que me encontro frágil, carente.
Quer me submeter a um sentimento que eu havia sublimado.
Sente que, ainda, gosto de você e tenta reacender a chama latente.
E quando me disponho a me entregar, me afasta.
Nesse vai e volta, vira e revira, se revela e me revolta.
Queria entender, por que me puxa pra si e me mostra o desprezo que sente por mim?
Só posso enxergar o troco guardado por anos.
Mas saiba que, agindo assim, você não sai vitorioso.
Saio ferida, nocauteada, procurando as cordas pra me apoiar e não cair.
Você levanta os braços, comemora a vitória e me olha com raiva.
Mas não é raiva o que sente por mim, é amor decepcionado.
No ringue que você armou, na luta que você arquitetou, no soco bem desferido em que você colocou todo o passado, ainda sou quem você quer.
Por que você não ganhou? Não percebeu?
Porque eu era o que você mais desejava na vida e, com seu movimento de vingança, conseguiu destruir, pra sempre, a possibilidade de estarmos, novamente, juntos.
Esperei por você, construi um caminho que me levaria de volta a nós, você percebia e estimulava.
Nos reencontramos, nos reaproximamos, nos dissemos o que vivemos sem nós, derramamos o sentimento por tantos anos guardado e, feito isso, você me tratou como uma qualquer que cruzou seu caminho. Me destratou, me anulou e, de novo, me perdeu.
Burro, não entendeu que a vida nos deu a última chance de realizarmos o que deixamos passar?
Que ela nos deu a possibilidade de reescrevermos nossa história? Que poderíamos ter um final mais feliz?
Sua revanche deveria ter sido a de me ter e me mostrar a felicidade que, por tanto tempo, não tive. Minha punição seria mais amarga, sendo feliz com você. Mas o gosto amargo que você manteve no canto da boca, fez com que me rejeitasse, não percebendo que estava decretando a sua infelicidade, também.  
Eu sabia  que te amava, desde sempre eu soube. Acontece que, quando jovens, acreditamos que outros amores virão e serão maiores do que aquele que deixamos. Pode acontecer.
Mas, no nosso caso, nenhum foi maior ou mais forte, a ponto de esquecermos.
Lembrei de você em cada dia de minha vida, e quando tentava esquecer, ainda assim, lembrava.
Sinto que o mesmo aconteceu com você, mas sua sede de vingança, seu ego ferido, sua paixão não consumida, tudo junto, fez de você o punhal que estraçalhou nossas vidas.
Como pode não perceber que, dessa vez, não há volta? Você fechou todas as portas, lacrou pra sempre a esperança de sermos felizes.
Não sei o que é felicidade, nunca fui, inteiramente, feliz. Mas não sei ser infeliz, sequer estar infeliz. Não me detenho no sofrimento, encaro, engulo, digiro e sigo. A vida ensina que não há tempo a perder com questões existenciais. Sobreviver é mais importante.
A vida há de continuar sem você, não vou morrer, sequer chorar o leite que você derramou.
Já estou ciente de mim, do que sou e do que quero. Mas, se não posso ter o quero, transformo o meu querer.
Não te odeio, não te quero mal e sei que você se machucou, me ferindo.
Vou olhar pra frente, sem você no meu horizonte.
Mas, por favor, olhe bem pra mim, agora.
Guarde minha imagem na sua retina, grave esse instante em sua memória.
Vou te amar pra sempre, sem você.
Você vai lamentar, enquanto viver, o amor que destruiu porque não soube o que fazer quando o teve, de novo, nas mãos.
Tomara que a vida te dê alguma compreensão do que fez.
Rezo pra que você me esqueça e não sofra.
Te amo. Adeus.

terça-feira, 10 de maio de 2011

DIAMÃETE

Dia das Mães.
Atrasada, como sempre, escrevo sobre essa data.
Penso nessa responsabilidade escolhida e, algumas vezes, delegada.
Fui aluna nessa escola, continuo sendo, no nível superior.
Filhas adultas elevam o nível de dificuldade.
Quando engravidei, fiquei apavorada e feliz, não sei qual sentimento predominava.
Pra começar, achava que não conseguiria engravidar, tinha certeza que meu corpo ia trapacear e dificultar a gravidez.
Bem, ele funcionou à contento, três vezes, sem nenhum tratamento fertilizante.
Mas a primeira vez é sempre aflitiva.
Será que vou conseguir cuidar de uma pessoa completamente dependente de mim?
Conseguirei entender suas necessidades?
Decifrarei seus choros, suas dores?
Esse choro seria dor de barriga, de ouvido, fome, sede, frio?
Insegurança teu nome é mãe!
E aí, de repente, sem aviso prévio, a criança nasce.
No meu caso, sem aviso mesmo, não senti nada. Dor, bolsa rompida, contrações ritmadas, nada.
Em nove meses, por três vezes, nenhum sinal de que elas estavam à caminho.
Evidente que fiquei feliz, ela estava bem, era perfeita, tinha dez dedos nas mãos, dez nos pés, nenhum problema físico, saúde perfeita e pulmão excelente.
Mas eu só havia parido, não era mãe, ainda.
Enquanto estava hospitalizada, tudo era fácil, só me ensinavam a amamentar, coisa pouca, já que ela devorava meus seios. Ainda assim, achava que não teria leite, que ela morreria desnutrida.
Mais uma vez, meu corpo me surpreendeu e me transformou em uma vaca leiteira. Amamentei todas elas e por longo tempo.
Mas seria isso, ser mãe?
Não era, não, isso era ser ama de leite, mas era menos uma insegurança. Eu era capaz de alimentar com meu leite.
Quando me vi só com minha cria foi que começou a aparecer a mãe.
E apareceu provocada pela criança que me colocava enigmas, vinte e quatro horas por dia.
Meus sentidos ficaram apurados, minha atenção era redobrada, meu tempo tomado, minha vida invadida. Bebê esgota, suga o seio e a existência. Mas aquela criança estava ali porque eu escolhi tê-la e precisava de mim pra cuidar dela, protegê-la, acarinhar seu corpinho indefeso, acalentar seu sono, remediar suas dores, confortar seu choro. E fui aprendendo a ser mãe.
Só agora entendo que instinto maternal é coisa de reino animal. Os humanos precisam se despojar de seus interesses, seu tempo, seu lazer, sua vida, por um grande tempo, talvez para sempre.
Não é abdicar de si, é viver com. O xis do problema é que humanos pensam e complicam.
Ser mãe é vocação, não adianta cobrar de quem não tem. Acho que deveria haver teste vocacional nessa escola, alguns desastres seriam evitados.
Quando me tornei mãe?
Evidente que não foi quando a primeira nasceu. Mas ela foi o bê a bá, foi meu dever de casa, em casa.
Me senti mãe quando não consegui me afastar dela, na primeira vez. Sai e voltei da porta, achava que ninguém iria entender o que ela queria, que só eu seria capaz de traduzir seu choro. Ledo engano. Era eu quem precisava dela, de tê-la ao meu lado. Precisava do que ela me dava, seu olhar, suas mãos agarrando meu seio, seu corpinho quente contra o meu. Entendi que não se nasce mãe, o amor é conquistado, oferecido e doado`. É uma via de mão dupla.
Ser mãe é um trabalho duro, nunca mais se dorme em paz, nunca mais se baixa a guarda, nunca mais se coloca em primeiro lugar. E, ainda assim, ama cada dia mais.
E minha vocação foi ficando mais forte, me descobri mãe.
A escola foi ficando mais complexa, mais desafiadora e eu mais aplicada.
Quando a segunda nasceu já me sentia mais segura, mesmo sendo diferente da primeira, era mais calma. Ou seria eu a ter mais tranquilidade? A terceira, me ensinou novas matérias, endiabrada, levada, arteira que era. Tive que inventar uma mãe pra cada.
São os filhos que nos dizem que mãe seremos, nos ensinam qual lição precisa ser mais estudada, qual dever deve ser mais aprofundado, são nossos orientadores.
Por isso não comemoro dia das mães, todo dia é nosso dia, todo dia é dia dos filhos que nos tornaram mães. Um não seria possível sem o outro.
Hoje, que Deus me ajude, tenho muitos filhos, de barriga e coração. Todo dia tenho um novo filho que agrego à minha extensa prole. 
Sou mãe em tempo integral, não porque preciso ser, mas porque gosto de ser. Adoro ser desafiada, ainda, pelos seus choros. Embora adultas, continuo na escola, ajudando a solucionar problemas, decifrando novos códigos, buscando alívio pra dores existenciais que parecem impossíveis de serem resolvidas.
E tenho meu lazer com elas, meu recreio, onde brincamos, rimos, nos divertimos juntas.
Minhas filhas me lapidaram, transformaram minha pedrinha sem valor em diamãete.
Feliz Dia das Mães. Feliz Diamãete.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

HOUSTON, TEMOS UM PROBLEMA!

- Não é você, sou eu.
E lá vamos nós.
Preparo meu traseiro pra levar o chute potente.
E ele vem, certeiro.
Me projeta pros quintos do inferno, sem piedade.
No espaço sideral em que me encontro só há o silêncio.
Nenhuma justificativa que me aponte uma resposta.
Não deve haver, mesmo. Deixa-se de gostar, acabou.
Estranho, não sinto a angústia de antes, que me apertava o peito, me tirava o sono, a fome.
As lágrimas sofridas e incontroláveis já não brotam em meus olhos.
De onde estou, experimento a claridade dos sentidos. Percebo, analiso. Enxergo acima dos motivos alegados.
Os rompimentos anteriores me calejaram, me ensinaram que não existe a incerteza do amanhã.
Por mais traumático que seja o hoje, o dia vai nascer sem levar em conta a noite que teima em ficar na alma. Embora se possa morrer de amor, e tem gente burra que, literalmente, morre de melancolia, o amanhã não percebe sua falta no mundo. A vida continua sem você, sem mim, sem qualquer um de nós. Aprendi que não se anula a dor, ela é como um hematoma que vai ser absorvido em seu devido tempo. Vai se desfazer e sumir dentro do meu corpo, se misturar às outras experiências que anoto em minha vida.
Lá, no alto em que você me atirou, percebo, com mais nitidez, os contornos e reentrâncias que limitavam minha visão.
Saí de órbita, como um foguete, pra perceber que sempre orbitei em volta de alguém. Andava em círculos, esperando proteger minhas fronteiras, achando que cercava com cuidados a pessoa que eu amava. Não via que corria atrás do próprio rabo, fechando meu mundo, fazendo com que nele habitasse só um ser e não era eu, era o outro.
Hoje sei que sou e sempre serei o número um, único, indivisível.
Mesmo estando rodeada por milhares, seremos milhares de um.
Não existe metade de laranja, alma gêmea, compatibilidade que mude isso.
Nascemos e morremos sós, e vivemos buscando o par. Não vai fazer a menor diferença essa procura. No final do dia, quando fechamos os olhos pra dormir, estamos sós.
Você foi mais uma tentativa de negar o número mágico.
Não se trata de me conformar com o fato de que sou só, é a constatação de que preciso ser feliz comigo e não depender de outro pra me fazer completa. Sou uma, sou única e devo me bastar.
Não preciso, ou não devo precisar, do olhar do outro pra existir. Quem quiser habitar meu mundo vai ter que aprender a viver ao lado e não dentro de mim. Aprendi a duras penas. mas aprendi.
- Houston, temos um problema!
E ele é imenso.
Estou voltando à terra, sei que posso me desintegrar se não fizer um pouso planejado e suave.
Preciso de um plano pra dar os passos que me trarão de volta.
Mas tenho fé em mim, vou pisar em terra firme e caminhar sobre meus próprios pés.
No fim, você me fez um favor.
Me fez enxergar, definitivamente, que meu solo não desaparece, que flutuar, de vez em quando, não me tira a certeza de que tenho meu chão, de que o ar que me envolve é tudo o que preciso pra me deslocar. Não preciso do outro pra existir, preciso de mim, inteira, única, uma.
Você estava errado quando deu a indefectível desculpa, porque não era você meu problema, era eu.
- Houston, terra à vista, pousando!

terça-feira, 26 de abril de 2011

BODE

Agora que a mágica se revelou truque.
Agora que o véu que encobria meus olhos caiu e a máscara que cobria seu rosto foi arrancada.
Agora que me encontro comigo e me despeço de você.
Agora que sei o que faço comigo, te absolvo.
Não encontro desculpa por mentir a mim mesma.
Acontece que não sei por que me permito a paixão.
Ela é um vício do qual não me curo por burrice, adição, necessidade.
Racionalizo e entendo que o erro sempre parte de mim.
Preciso aprender a evitar a armadilha que armo pra mim. Armo e caio.
Paixão é química perigosa, inflamável, destruidora.
Consome e arrasa, deixa um rastro de cinzas.
Deveria ser proibida por decreto e, aos que burlassem a lei, aplicada a pena máxima: imunidade permanente.
Não creio que me apaixono por alguém, me apaixono pela sensação que ela me dá.
É uma droga poderosa que me faz perder o juízo, me arrebata, me desloca do real, me aniquila.
Mas, enquanto dura o efeito, me dá a sensação de poder, de euforia, de descontrole.
Me faz acreditar que tudo é possível, em nome dela.
Você não era a pessoa que, em minha ilusão, eu queria que fosse. Você foi, simplesmente, você.
O objeto da minha paixão.
Não quis reparar no engano, investi no erro que busco em qualquer um. Mergulhei em águas conhecidas e turbulentas. Sabendo que, ou me afogaria, ou morreria na praia.
Mas o vício falou mais alto.
Me atirei do penhasco sabendo que não encontraria nada diferente.
Sabia que o que me movia era sentir, novamente, aquela sensação que parece libertadora, no início.
Dura pouco e machuca muito.
Paixão não implica no outro, é como me sinto que interessa. É a falta de ar da expectativa do encontro, é a motivação pra dormir tarde e acordar cedo, é o sorriso permanente, é o caminhar sem tocar o chão, é isso que me faz falta. Não é você!
Poderia ser qualquer pessoa, poderia nem se relacionar comigo, poderia me ignorar, me evitar, me rejeitar e, ainda assim, me motivar.
Essa é a engrenagem da paixão, correspondida ou não.
Você foi o instrumento da vez, a desculpa que me dei pra não reconhecer meu vício.
Não fosse por ele, você seria, no máximo, um amigo. Não tínhamos afinidades, tínhamos química.
Não precisava me apaixonar, bastava resolver a eletricidade com uma descarga momentânea.
Mas a vontade de reter o choque me arrastou pro olho do furacão. Queria adrenalina, queria taquicardia, queria adoecer, ficar de cama, na cama, queria mais química e mais doente ficava.
Por isso, te isento de culpa. Em momento algum você se colocou disponível, ao contrário, se mostrava arredio e desconfiado. Entendendo, talvez, ser a flecha que eu precisava pra atingir meu alvo.
Acho que nem estávamos em sintonia. O que eu sentia dizia respeito a mim, não a você.
O que você sentia, não sei. Porque só me interessaria se fosse na mesma intensidade da minha voracidade.
Não dava pra assumir tamanha responsabilidade. Perder os freios não é pra qualquer um, é preciso ser louco pra perder o controle com uma pessoa tão alucinada.
Você não é um adicto, não compartilha agulhas que espetam o coração e o fazem sangrar.
Sua doença é outra. É controlado demais pra se permitir entrar na escuridão dos sentidos e ser tragado por eles.
Viciados, como eu, têm sua turma.
Temos nossas marcas escondidas, não exibimos nos braços ou nas rugas profundas do rosto.
Ter consciência da doença não quer dizer que posso confrontá-la, quer dizer que sei que ela existe.
Mas quero acreditar que vou conseguir aprender a lidar com ela.
O "bode" da paixão não difere dos outros "bodes", só é mais aceito e provoca compaixão. Forma-se uma rede de solidariedade que só faz aumentar a adição. Torna-se um outro vício que depende do primeiro. Fecha-se o cerco.
Por isso não quero colo, não quero facilitar a recaída.
Vou afundar até tocar a dor que se esconde na água escura e procurar subir à tona, tentar me salvar de mim mesma.
E entender que vou ficar em processo de cura todos os dias.
Entender que a abstinência dói. Terei que negar a alucinação, evitar as vozes que me dirão pra tentar mais uma vez, me proteger do que me magoa.
Deixar, de vez, o vício.
Só me amando poderei me aceitar e amar outro, sem paixão, sem cegueira.
Permitindo que me amem, a cura será, espero, possível.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

ANTES QUE EU ESQUEÇA

Ando incomodada com algumas lembranças indesejadas.
Resolvo encarar uma boa faxina interna.
Tarefa hercúlea, mexer e remexer o baú da memória.
Passado é aquele incoveniente que, de vez em quando, bate à sua porta.
Todo passado assombra, exige solução. Guardar ou atirar às traças?
O que não tem solução, solucionado está!
Não devo me prender ao que não depende de mim, ou que não depende só de mim.
Deixo ir, escorrer, esse tempo que retive, por não saber o que fazer dele.
Quanto menor a bagagem, mais leve a vida.
Bagagem extra, aquela que carrego esperando, um dia, resolver, essa vai desaparecer.
Ela só serviu pra criar mofo e dificultar a respiração.
Mágoas, amores mal resolvidos, pendências que carreguei pela vida, só a mim fizeram mal.
Retiro do quarto de guardados, direto pra lixeira. São despejados e esse espaço interno será limpo e arejado.
Não pensarei se vale a pena preservar, não serei um museu dos horrores, exibindo em minhas paredes as cicatrizes, as dores, o sangue que perdi. Essas batalhas já foram travadas e se não ganhei, paciência.
Se a memória pode selecionar, vou fazê-lo a meu favor. Incomodou? Desapontou? Feriu? Lixo!
Precisei de muitos anos pra, finalmente, entender que ninguém é culpado pelas minhas inseguranças, meus temores, meus amores frustrados, minhas loucuras.
Se guardei tudo isso, cabe a mim eliminar, desinfetar o porão e não visitar, nunca mais, o lugar que eles habitavam, aprender a desviar do que me faz mal, não permitir que novos visitantes preencham, novamente, o que levei tempo pra expulsar.
Chateação guardada é página virada!
Diariamente, sem dúvida, surgirão probleminhas, a eles darei a dimensão exata e resolução imediata.
Os que forem, realmente, problemas, tentarei resolver da forma mais rápida e indolor possível.
Alguns levarão mais tempo de digestão, talvez precise me focar neles um pouco mais que o desejável, mas não serão deixados em banho maria, não tenho mais tempo pra ruminações. Problema velho, não resolvido, mal resolvido ou meio resolvido, fora! Assimilado! Check!
Feito isso, darei espaço ao prazer. Usarei a parte boa da minha história pra ser lembrada e, assim, oxigenar o ambiente mental. Essa é a parte da faxina em que vou espanar o pó, lavar as porcelanas, varrer o chão e lustrar os metais, fazer brilhar minha melhor e mais feliz memória.
Lembrar das coisa boas que a vida me deu e das que conquistei.
Lembrar dos amigos de sempre e da vida que, em algum momento, compartilhamos.
Lembrar das pessoas que me ajudaram a ver melhor o caminho por onde andei.
Lembrar das pequenas coisas que deram sentido a minha trajetória.
Lembrar das escolhas que fiz e não lamentei. Embora algumas tenham sido erradas, elas fizeram de mim o que sou.
Lembrar que a vida me deu mais alegrias que tristezas.
Lembrar de esquecer as dores.
Lembrar dos momentos em que Deus se manifestou em meu mundo. Particularmente, no nascimento de minhas filhas.
Lembrar que sou merecedora e jamais devedora.
Lembrar que minha felicidade depende de mim e de como atuo diante dos abalos emocionais.
Lembrar que, em uma guerra, sempre há um vencedor, acreditar que, se fui vencida, não foi uma batalha perdida. Talvez aquela não fosse minha guerra particular.
E lembrar que, a vida sendo uma só, tem que ser vivida de verdade, com verdade e, principalmente, com prazer, amor, gratidão e bondade.
Lembrar que, lambidas as feridas, curado o mal, afastada a doença, tenho que ser uma pessoa melhor.
Pelo menos, até que me esqueça de lembrar!

sábado, 16 de abril de 2011

BIRINIGHT

Dia raiando, tênis chamando.
Vou fazer minha obrigação matinal, embora, todo santo dia, acorde dizendo que vou "matar" a caminhada.
Com preguiça e culpa por pensar, sempre, em adiar o que é bom pra saúde, visto o uniforme oficial e surrado da malhação.
Lá vou eu, ajudando o meu dia a nascer.
Depois de cumprida a tarefa, paro, como sempre, na Reserva. Sento no banco que já começa a tomar a forma de minha anatomia.
Agora, me sentindo endorfinada, respiro.
- Smirnoff, Orloff, peguem a bolinha!
Essa Reserva é um espanto! De onde menos se espera, vem novidade.
- Oh, bom dia, dona Angela, vim dar um passeio com minhas meninas.
- Bom dia, Pedro.
Sempre que o vejo, lembro da música do Chico. Pedreiro, também, esse Pedro.
Trabalha na obra em progresso que é esse condomínio.
Vem acompanhado de um amigo, que me apresenta.
- Esse aqui é o Osvando, mas chamam de Alex, porque ele não gosta do nome.
- Não gosto, não, senhora.
- Por que? O que há de errado em se chamar Osvando?
- É que pobre tem mania de juntar nome de pai com o da mãe. Sai, sempre, nome feio.
- O seu é um palavrão, debocha Pedro.
- Quais são os nomes de seus pais?
- É Osvanir e Vanda. Pensaram em Vandosvani, acabaram botando Osvando.
- Menos mal, né, dona Angela?
- Não tem nada errado no seu nome.
- É, mas não gosto, não. Prefiro Alex.
Não perguntei o por que da preferência, fiquei com receio da explicação.
- Você trabalha na obra?
- Trabalho, sou ladrilheiro.
Smirnoff (ou seria Orloff ?), vem fuçar meus tênis, talvez sentindo o cheiro do meu cachorro.
- Sai daí, menina, deixa a madame em paz.
- Ela não me incomoda, Pedro.
- É que tem gente que não gosta.
- Sou cachorreira, não se preocupe. E elas são mansinhas. Que bom que você cuida delas com carinho, isso é raro, hoje em dia.
- Só podia botar uns nominhos mais bacanas, a senhora não acha?
- Agora deu pra implicar com tudo que é nome, Alex?
- Implico com nome de pobre.
- Que nome de pobre? Qual é o pobre que tu conhece que tem o nome das  minhas cachorrinhas?
- Graças a Deus, nenhum. Já imaginou, gente com esses nomes? E não são nomes nem de mulher, nem de homem.
- Por que?
- Tudo termina em off, ninguém se chama Rodrigoff ou Marlenoff.
- Mas teu apelido  termina em ex. Alex.
- Mas o nome, mesmo, termina em o. Macho.
- Não quer dizer nada.
- Rapaz, mulher termina em a e homem em o.
- Vou dizer um nome e tu me diz se é homem ou mulher. Darcy.
- Acho que é homem.
- Errado, mulher. Minha tia Darcy.
- É, seu Osv... Alex, nome pode confundir, digo, metendo o nariz sem ser chamada.
- Quero exemplos, Pedro.
- Sei lá, Lair, pode servir pros dois.
- Tive um médico chamado Sirley. Na primeira consulta, levei um susto, a porta do consultório abriu e eu não esperava um homem. Meu outro médico, muito querido, se chama Nadir.
- Nadir, madame? E é homem, mesmo?
- Claro que é! E dos mais interessantes que conheço.
- Mas que é esquisito, é. A senhora tem que concordar.
- Alex, vamos deixar dona Angela em paz. Tamos tomando o tempo dela.
- Aí, desculpe, não queria incomodar.
- Não, Alex, vocês não estão incomodando.
- Mas a gente tem que voltar pro batente. Só vim dar uma voltinha com elas. Bicho sente falta do passeio.
- É verdade, igual a nós.
- Só que a gente se leva, né? Eles precisam da gente.
- Pedro?
- Senhora?
- Fiquei curiosa, por que Smirnoff e Orloff?
- É, Pedro, por que tu não botou nome estrangeiro?
- Primeiro quero dizer, Alex, que elas têm nome de mulher, sim.
- Ah, é?
- É. Elas têm nome de vodca, a vodca, não é o vodca.
- Por que não botou vodca estrangeira, tipo, Absoluta e Vigorosa? ( Acho que ele quis dizer Absolut e Wyborowa).
- Porque não sou metido a besta que nem você. Depois, Absoluta e Vigorosa é coisa de travesti.
- Mas, afinal, por que, Pedro?
- Porque, dona Angela, minhas meninas são vira latas.
- De luxo, né, Pedro? Devia botar os nomes de "Caninha e Pinga".
- Não adianta, OSVANDO, tu implica com qualquer nome. Vam'bora.
- Prazer, madame, se precisar dos meus serviços, é só  falar com o Pedro.
- Tenham um bom dia, a gente se vê.
- Com certeza, madame. Bom dia pra senhora.
- Vamos Smirnoff, chama a Orloff!
E voltam ao trabalho, seguidos por suas biritas.
Agora, me digam, como vou poder ouvir essas bebidas serem pedidas, sem ter um acesso de riso?

sexta-feira, 15 de abril de 2011

TESTAMENTO

Quando eu morrer, por favor, sejam breve nas despedidas, lembrem que já não estarei lá.
Quando esse momento chegar, estarei longe e inacessível, portanto nada de lágrimas.
Sei que é difícil dar adeus, não ter mais por perto alguém que se gosta, já passei por essa experiência.
Por ter vivido isso, sei que a dor é inevitável, mas a gente escolhe: se lamentar ou deixar a angústia escorrer.
Não me exponham, odeio visitação pública, fora que vou estar em meu pior momento. Não façam isso comigo!
Ao me vestirem, nada de melhor roupa, elas vão virar fumaça, melhor dar a quem precisa.
Podem botar uma roupinha velha, só me cubram as pernas, nunca gostei delas!
Flores, nem pensar! Não gosto do cheiro em vida, então, flores, nem morta!
Talvez, um ramo de amor perfeito nas mãos, se acharem. Mas não é essencial.
Prefiro que me cubram com fotos, qualquer foto de pessoas e lugares que amo, assim vão subir aos céus comigo e, como terei a eternidade pela frente, gostaria de ter imagens queridas me acompanhando nessa chatice. Sei que serão queimadas mas vou reter em algum lugar, sei lá onde.
No lugar de lamentações, música. Uma trilha sonora com as músicas que gosto, que pontuaram minha vida.
Mas, por obséquio, volume baixo, não suporto música alta, me atordoa e, embora vá estar surdinha, a ocasião não vai pedir. Portanto, boa educação nessa hora. Sejam moderados, também, no som.
Tem algumas que eu faço questão: My Way, Hotel California, In my life, The Long and Winding Road, Here Comes the Sun, Here There and  Everywhere, outras, que achem que têm a minha cara, podem escolher. Mas não esqueçam de rock, e, por favor, nada das esganiçadas, tipo, Mariah Carey, Celine Dion, nada de voz espremida, me irrita.
Bebam e dancem, por mim, celebrem, lembrando que a gente vive pra ter esse encontro, nada demais, c'est la vie!
Se alguém esboçar chorar, contem uma piada e riam, gargalhem, faz bem pra alma e ameniza a, provável, tristeza. O som da felicidade é fundamental pra quem parte.
Encham o espaço de boas lembranças, elas tiram o peso do luto.
Quando conversarem, escolham temas amenos, eles ajudam o tempo a passar mais levemente.
Coroas de flores, tirem do recinto! Não vou ver e nem levar comigo. Só prestam pra, depois, os floristas revenderem. Imaginem, flores reaproveitadas de defunto desconhecido! Não dou intimidade a quem não conheço.
Maquiagem, meus amados, sequer blush. Estando mortinha da silva, vai servir pra que? Não vou estar a fim de impressionar ninguém, deixem a pele descansar em paz!
Quando virem aquela carinha de pesar em alguém, saiam de fininho e não deixem o dito cujo se aproximar, faz mal pra saúde, coisa que vocês têm e devem preservar.
Quanto as orações, imploro, de joelhos, não permitam a entrada de quem queira encomendar meu corpo ou alma. Encomendar pra que? Deus já recebeu o pacote e, aqui na terra, quem vai encomendar o que não vai receber? Rezem, se quiserem, mentalmente.
Depressão, não! Nunca fui deprimida em vida e, esticadas as canelas, vou ficar p da vida e volto pra atormentar, em espírito, quem tiver a ousadia de tê-la. Canta que a depressão sobe.
 Este é só um caminho que chegou ao final, e vai ser assim com qualquer um.
Não mitifiquem, nem mistifiquem minha passagem por aqui, sou só mais uma mãe, mulher, amiga, parente, pessoa. Sem essa de ser especial, não fui uma pessoa excepcional, nunca tive a pretensão de fazer diferença.
Cuidado com os pitis, classe é fundamental. Nada de choro alto e convulsivo, desmaiar é coisa de jeca, não se atrevam a perder a elegância! Mesmo morta, quero manter a pose. E mantenham o prumo, vocês que vão assistir o último ato.
Não temo a velha senhora. A cada dia me aproximo desse encontro, do momento em que a foice vai cortar meu ar.
Vivam, cada dia, como  se fosse o último. Na verdade, não há novidade nisso. Todo dia é mesmo o último que se vive, já que ele não volta, foi, já era, nunca será de novo. A vida está repleta de últimos dias.
Guardem o que quiserem de mim, mas gostaria que fossem as bobagens que fiz ou disse.
Prefiro que me lembrem com um sorriso ou uma gargalhada, vai ser muito inconveniente lembrarem maus momentos. Nada de constranger quem não pode se defender. Pensem bem no que vão dizer de mim, cuidado!
Nem mencionem doenças, tenho pavor desse papo. Todo mundo vai querer falar de desgraça e, aí, vira competição, não é o momento de conhecer doenças piores, desenlaces medonhos. Quero isso bem longe, não permitam, por favor!
Perfuminho suave, cai bem. Uma gotinha em cada orelha e entre os seios, já tá de bom tamanho.
Me entreguem ao barqueiro, suavemente, de preferência em silêncio, vocês sabem que aprecio esse som. Quero fazer a travessia em ambiente calmo.
De resto, gosto de estar só, de morar em mim.
Quando minha hora chegar, me dêem uns minutinhos, sozinha, meu corpo e minha alma, se ela existe, precisam se encontrar pra se despedirem e, enfim, se separarem.
Não sofram, não chorem, não lamentem, nada disso vai mudar o curso desse rio que corre para o mesmo lugar de onde veio.
Esqueçam meu lado escuro, façam a luz de mim, em mim, pra mim.
Digam adeus e mais nada, quando eu me for.