quarta-feira, 30 de novembro de 2011

TELEPATIA

"O Livro do Desassossego".
"As Afinidades Eletivas".
Ela tentando ler.
Ele fingindo que lia.
Ela buscando uma posição confortável.
Ele afundado na poltrona.
Às vezes, seus olhos se encontravam e, ràpidamente, eram desviados.
Ela acende um cigarro.
Ele mantém o cachimbo apagado, preso entre os dentes.
Ela pensa que precisa contar, desabafar.
Ele pensa que ela esconde algo.
--" Ai, meu Deus, me ajude! "- ela pensa.
--" Tenho que virar a página."-ele pensa e vira.
--" E se ele não me perdoar?"
--" Se for o que eu imagino que seja..."
--" Não sei como começar."
--" Preciso estar preparado."
--" Pode ser um choque."
--" Ela não vai me surpreender."
--" Será que ele vai entender?"
--" Qual desculpa ela está preparando?"
--" Vou dizer que não pretendia ferí-lo."
--" Ela vai tentar me dizer que não fez por mal?"
--" Ele vai acreditar em mim?"
--" Ela acha que me engana."
--" Como eu fui deixar que isso acontecesse?"
--" Por que ela foi fazer o que eu acho que fez?"
--" Mas, quando aconteceu com ele, eu perdoei."
--" Ela vai dizer que me perdoou, quando eu fiz."
--" Mas será que não vai parecer que eu fiz por vingança?"
--" Será que ela perdoou ou usou esse tempo prá preparar o troco?"
--" Eu posso usar esse argumento, se ele não aceitar."
--" Ela que não pense que, depois de tanto tempo, eu vou engolir essa historinha."
--" Mas eu precisava de ar, precisava de atenção."
--" Será que fez isso prá chamar minha atenção?"
--" Não é  verdade. Fiz porque queria, porque me senti desejada, depois de tanto tempo."
--" Não, não foi prá me acordar. Foi prá testar o meu limite."
--" Será que ele vai entender que não tem nada a ver com ele? Com o que temos?"
--" Ela não aceita que o tempo diminui o desejo."
--" Quando foi que ele parou de me querer?"
--" Temos vinte anos de vida em comum e ela ainda acha que o tesão deve ser o mesmo."
--" Por que meu corpo não sossega?"
--" Tenho alunas interessantes e interessadas, isso pode dar tesão."
--" Ainda quero ter e dar prazer. Por que não com ele?"
--" A mesma cama e mesa por vinte anos, enjoa."
--" Porque ele não me vê mais como mulher, agora sou a companheira de quarto."
--" Tenho esperado por essa rebelião, é típico de mulher."
--" Eu fui enxergada, e foi bom. Mas me sinto culpada."
--" Não vou facilitar, deixo ela se remoer e, aí sim, contorno a situação."
--" Por que não me acomodo? Por que sinto tanta urgência em viver o que preciso?"
--" O que ela quer mais da vida?"
--"Por que sinto que devo me apresentar à vida?"
--" O tempo, agora, é de espera."
--" Melhor não falar nada, esquecer o que aconteceu, me anestesiar."
--" Ela vai acabar entendendo."
--" Nunca vou entender porque a vida termina antes de acabar."
--" Não somos mais os jovens que éramos."
--" Ainda sou aquela que quer aprender, que olha prá frente a espera do imprevisto."
--" Não persigo mais os sonhos, acalmei minhas vontades, refreio meus desejos."
--" Sei que meu caminho e possibilidades estão diminuindo."
--" Ela sabe que, no fim, somos nós dois e mais nada."
--" Sei que ele precisa de mim, embora não me tenha mais."
--" Ela precisa de mim prá dividir a solidão."
--" Senti, talvez pela última vez, meu corpo ser tocado por mãos ávidas."
--" Acho que ela não vai me falar nada, não precisa, não vai fazer nenhuma diferença."
--" Ele percebeu o que aconteceu e preferiu não confrontar, teve medo."
--" Melhor assim, passar por cima."
--" Melhor assim, sufocar a verdade."
Viraram as páginas, ela com a culpa de ter sido perdoada, ele com a consciência tranquila de ter fingido que a perdoava.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

RÁDIO SAUDADE

Sempre que ouço Caetano, lembro de minha querida Gotty. Amiga de longa data e moradora vitalícia em meu coração.. Não sei porque faço este link, não consigo ligar uma música específica a um determinado momento. Deve ser porque Caetano foi meio que onipresente nos anos setenta.
E aí, como que por feitiço, desencadeio lembranças de uma época rica em acontecimentos, alguns históricos.
Naqueles anos o mundo fervia, e nós ardíamos ao sol do Rio.
Enquanto a repressão comia solta, éramos felizes, apesar dela.
Jovens e destemidos, tínhamos um bom combate, lutar contra a ditadura, cada um a seu modo.
Na pior época, estávamos fazendo "Roda Viva", peça de Chico Buarque, que os censores, cochilando, deixaram passar e que se tornou, depois de algum tempo, alvo de ataque do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), quando fazia temporada em São Paulo.
Foi no teatro Princesa Isabel que a camisa ensanguentada do estudante Édson, morto no Calabouço (restaurante de estudantes que existia no centro da cidade) foi mostrada ao público no fim da peça. Se não me falha a memória, foi o primeiro teatro, depois aquela camisa percorreu todos os outros.
Fizemos parte da Passeata dos Cem Mil e fazíamos história, sem saber.
Esse é o lado ingrato de "fazer história". Quando estamos lá, não imaginamos o desdobramento, não calculamos o que aquilo representa no momento em que acontece. Agimos por impulso, por necessidade de reagir à truculência, pela revolta de tentarem calar um povo com armas.
Houve os que partiram prá luta armada, não era o meu caso, tenho pavor a qualquer arma.
Tempos sombrios mas, também, tempo de transformação.
Tempo do desbunde, da fossa, do movimento hippie, de muito sexo e rock'n'roll.
Tempo de amor livre, de grandes paixões, de arrebatamento.
Tempo contraditório, de guerra e união, de mordaça e, por outro lado, liberdade.
A juventude dá este poder, ser o que se quer, fazer o que der na veneta.
A falta de laços mais apertados permitia uma quase irresponsabilidade.
Gotty era e é mais alternativa, viveu em comunidade, é mais desprendida, sabe tudo de horóscopo, I Ching, estuda e aprofunda seus interesses, pinta, borda, escreve, é artista de verdade.
Eu sempre fui mais observadora, mais tímida, menos arrojada. Sempre precisei de chão firme prá pisar embora desse umas "voadas". Diria que eu era controlada. Tinha medo de enlouquecer e perder o rumo, vi muitos amigos baterem asas prá sempre, por drogas, pirações, pelo pacote daqueles tempos.
Foi uma época extremamente criativa e inspiradora. A cultura foi protagonista, deslanchou um movimento de resistência que se expandiu e invadiu mentes adormecidas. Foi bonito viver naqueles tempos. Não sou saudosista mas tenho memória e adoro ter vivido o que vivi.
E a cereja do sundae era o encontro da nossa tribo na praia de Ipanema, nas Dunas da Gal.
Todos de cara amassada das noites nos bares, discutindo o rumo da humanidade, debatendo, jogando conversa fora, rindo uns dos outros, sofrendo amores perdidos, vivendo intensamente, sendo jovens.
E tudo me veio à mente por causa de uma rádio qualquer que tocava Caetano e me lembrou da Gotty, do Solar da Fossa, dos festivais de música, do teatro engajado, da cultura efervescente, do movimento estudantil, aqui e no mundo, dos hippies, dos ensaios, das aulas na escola de teatro, dos amigos de sempre, dos que se foram e dos que ficaram no meio do caminho, me lembrou de uma vida que valeu a pena.
Éramos jovens e felizes. E sabíamos.