terça-feira, 29 de maio de 2012

ÚLTIMA VIAGEM

À quem interessar possa.

Com essa pretensiosa introdução, despeço-me desse veículo.
É a última viagem que faço nesse trem-bala chamado blog.
Adorei passear por aqui, mas como tudo na vida é transitório, também meu blog padece desse mal.
Foi uma viagem inesquecível, daquelas que a gente lembra com carinho.

Escrevi o que via, percebia, sentia. Fiz um blog sem mentiras, do meu jeito. Mostrei meu avesso. Deixei fluir, em linguagem direta, sem rebuscados, histórias da vida real.
Mas como a vida real não dá IBOPE, e eu, infelizmente, não tenho o dom de iludir, entendi que o que escrevo não se encaixa no mundo virtual.

Vou continuar escrevendo, para mim e para quem gosta de saber o que penso, mas privadamente.
Talvez volte no tempo e mande cartas para velhos amigos, aqueles que sei o endereço de moradia.
Ainda gosto desse ritual.

Quem passou sem se deter, não se identificou, mas tentou. Obrigada.
Quem voltou, de vez em quando, veio buscar um pouco de realidade. Espero que tenha encontrado.
Quem frequentou com mais assiduidade, e quero deixar claro, pouquíssimos, conto em dois dedos da mão esquerda, que é a do coração, sabia quem eu era. E vai continuar sabendo.
Não tive seguidores, tive amigos e era para eles que escrevia. Todos próximos, conhecidos, mais que amados, reverenciados.

Tentei dar o melhor que podia, espero ter conseguido.

Convoquei todas as minhas personagens ao último vagão desse trem que agora parte, por uma razão: em vez de descermos na estação mais próxima e nos perdermos, ficaremos, juntas, em um desvio desativado da ferrovia. Há a possibilidade de sermos resgatadas em um livro.
Mas nosso vagão será desengatado do trem-bala.

O mundo virtual será a sociedade do futuro, onde não haverá necessidade de contato pessoal, onde tudo se resolverá pragmaticamente, sem envolvimento, sem emoção.

Viver é mais complicado.
Viver é perigoso, dizia, Guimarães Rosa!
Viver é etcetera, ele, de novo!
E é esse etcetera que me interessa.

As relações interpessoais serão substituídas por telas, onde as pessoas se apresentarão e interagirão por webcam. Ninguém precisará sair de casa para se relacionar com alguém.

Como será beijar virtualmente? Beijo tem encaixe, movimento, gosto. Mas, como tudo é possível, talvez inventem uma ferramenta que reproduzirá essas sensações.

Não sei amar por webcam, nem fazer amigos, assim.
Não me considero capaz de escolher, entre milhares de fotos, aquele que vou ter como amigo.
Não evolui à ponto de me privar do contato pessoal, do toque, do olhar.
Sinto falta do junto, chorar junto, sorrir junto, brincar junto, só assim faz sentido.
Então, como me considero inapropriada para frequentar esse ambiente... os incomodados que se retirem!

Agradeço muitíssimo à quem se interessou pelo que eu tinha a dizer.
Quem sabe esses são, também, órfãos da vida real. Ou nostálgicos. Ou arqueólogos de emoções, nem tão antigas, assim.

Mas chegou a hora de desengatar esse último vagão, aquele que sobrecarregava, inutilmente, essa moderna locomotiva.
Essa foi a última viagem.
É hora do adeus.










segunda-feira, 28 de maio de 2012

CURTO CIRCUITO

Que nome dar ao que sinto?
Que coisa que desaquieta deve de ter nome.
Como chamar esse tic tac na cabeça,
bomba armada com precisão de tempo?
Meu coração taquicardiado, precisa de explicação.
Se desse nome ao que sinto, daria definição.
Meu sangue se aligeira na veia, corre sem destino,
depressa demais pro meu entendimento.
Meu corpo tenso, 
procura essa palavra que vai trazer a descontração.
Mas que palavra é essa que me falta?
Quais letras tem precisão de dar as mãos e formar a resposta?
No vasto leque de emoções, a todas já dei nome.
Nenhuma é a que sinto.
Olho prá frente e enxergo o dentro, isso tem que ter nome.
Sigo adiante, em linha reta, mas meu eu ziguezagueia prá trás,
vivo voltando ao antes.
Apuro os ouvidos, meu escutar está fraco, só escuta uma voz.
Essa, sim, tem nome.
Mas não é desse nome que falo,
esse eu já sei quem é.
Sei que quem provocou esse sem nome,
foi esse que nome tem.
Tudo foge ao meu controlar,
preciso achar esse nome,
esse oculto, esse que vai clarear.
Esse nome escapa do dicionário,
que já li que nem bula de remédio.
Procurei nas entrelinhas, nos efeitos colaterais,
esse nome se esconde só prá me agoniar.
Minha pele me rejeita,
não quer o meu tocar.
Minha boca não se abre ao falar,
falo com o pensamento, ninguém consegue escutar.
E tanto pensamento, não consigo dar vazão,
eles embaralham as idéias,
vão prá lá e se arrependem,
voltam prá cá e não se entendem.
Andam brigando por espaço,
amontoadas em meu pensar.
Meu entendimento está sem pernas, não avança,
desaprendeu a lógica.
Que a lógica só vai voltar,
quando o nome que busco, descobrir minha cabeça.
Acho que esse nome se perdeu dentro de alguma gaveta
ou entre as dobras da coberta em que me escondo de mim.
Se eu não achar esse nome, se ele se perder do meu sentir,
se o nome que sei, não der nome ao que eu não sei,
então sou caso perdido.
Vou ter que viver com o achamento
que essa coisa sem nome só acontece em mim,
porisso nem nome tem.
Então, vou batizar o sem nome com o teu.
Aí, o sentimento vai ter definhação.




ENQUANTO VOCÊ DORME

Enquanto você dorme, eu ardo. Ao seu lado, em vigília, ardo.

O sono faz com que você abandone a alma. Eu, Mefistófelis à espreita, quero possui-la.

Você, desprotegido, inconsciente, passeia em sonhos, sorri. Prá quem? me pergunto.

Enquanto você dorme, se afasta. Me deixa seu corpo indefeso e eu quero seus pensamentos.

Enquanto você descansa, me esquece. Eu não durmo para não te perder.

Enquanto você dorme, eu amo. Amo a respiração pesada, o corpo vulnerável, os movimentos espontâneos. Amo você, enquanto você dorme.

Queria poder entrar em seus sonhos, ser a protagonista de todos eles. Queria viver dentro deles, dentro de você.

Queria que fossemos um, assim, eu poderia dormir.
Sonharíamos o mesmo sonho, juntos, abandonaríamos a alma, que seria uma só.

Mas, enquanto você dorme, eu velo seu sono, esperando seu despertar.

E quando você despertar, eu poderei, finalmente, dormir.
Porque nos meus sonhos, sei que vou te encontrar.







CLANDESTINO

A varanda era grande, com sofás confortáveis, mesas espalhadas, plantas e flores bem distribuídas.
Tinha balanços, desses bem antigos, que remetem à vida de fazenda, à simplicidade da existência.
Tinha velas que ela acendia à noite, luzes trêmulas acompanhando o pisca-pisca dos vagalumes.
Tinha a paisagem exuberante, vales, matas, lagos, montanhas.
Tinha a privacidade da distância de quilômetros, até o vizinho mais próximo.
Tinha a quietude quebrada somente por aves, micos, cães e gatos.
Tinha um céu azul , imaculado, durante o dia e uma tenda negra com luzes minúsculas, durante a noite.
Tinha a companhia de livros escolhidos, para espantar a solidão.
E de música erudita, para não quebrar a harmonia.
Tinha alimento e coberta que aqueciam o estômago e o corpo.
As noites eram geladas, naquela varanda, mas ela não se importava, gostava de frio.
Se enroscava em uma grossa manta de lã, encolhia-se no canto do sofá e deixava-se abraçar pela paz. Sentia-se parte da natureza.
Quando seus olhos cansavam de tanta beleza, fechava-os, assim a retinha na memória.
Apagando a imagem, apreende-se o significado.
E, como a lente de uma máquina, abria e fechava os olhos, captava a foto do instante fugaz.
Passava os dias caminhando com seu cão, única companhia e ouvinte, seus segredos bem guardados por um animal. Trocava afagos por lambidas de gratidão.
Quando cansava, sentava em uma pedra, tirava as botas e pisava na vegetação, buscando energia naquele solo úmido e frio.
O tempo escorria por si, passava sem chance de retornar. Tempo é a única coisa na vida que não volta.
Deitava sobre a pedra e olhava aquele céu, a luminosidade cegava.
Seu cãozinho aconchegava-se, não sei se aquecendo à si mesmo ou à ela.
Nos dias mais quentes, banhava-se nua na cachoeira que formava uma bacia. Ali, podia nadar.
Seu corpo se mostrava vivo, arrepiava-se com o choque térmico, um misto de desconforto e prazer.
Descargas elétricas a faziam tremer, mergulhava e, de olhos abertos, via o nada em volta.
Emergia, buscava o ar, expandia os pulmões, respirava a pureza.
Então, se tocava, se acariciava, fantasiava que mãos conhecidas e não as suas, desbravavam seu corpo, conquistavam seu mais íntimo recanto, implodiam suas defesas, explodiam suas represas e faziam jorrar sua fonte de prazer.

Em um desses dias, voltou à casa com o corpo acalmado, mas uma inquietude interior não a deixava sossegar.
À noite, sozinha naquela imensidão, lembranças invadiram seu refúgio, fantasmas assombraram, perguntas assolaram e a falta pesou, soterrou o coração em fuga. Não havia mais onde se esconder.
Passara todo esse tempo, tentando esquecer de si mesma, dele, da dor da separação.
Tentara se bastar, fugindo da tentação de voltar.
Acreditara que a distância se encarregaria de suavizar a perda.
Toda essa beleza e paz em volta e nunca se sentira tão infeliz.
Adormeceu sob um luar deslumbrante, inapropriado para o momento.
No dia seguinte, enquanto tentava livrar-se da ressaca emocional, sentiu a inutilidade de se esconder, de embriagar-se.
Dois telefonemas bastaram prá que o coração disparasse desgovernado. Telefonemas inesperados, descuidados, provocaram à volta ao lugar inicial.
Atordoada, despreparada, surpreendida, sentou no balanço e, como uma criança, se acalentou, abraçando o que restou dele: um casaco que viajou clandestino em seu carro. Esquecido, como ela.











PAS DE DEUX

Me despia com o olhar.
Encostava os lábios em meu pescoço, eu tombava a cabeça.
Soltava meus cabelos e sussurava em meu ouvido: te amo.
Meu corpo respondia: sou tua.
Abraçava-o, encostava meu rosto em seus ombros, meu coração batia em seu peito.
Tirávamos devagar as roupas, um do outro, enquanto acariciávamos cada centímetro que era desnudado.
Pegava-me no colo, eu envolvia sua cintura com minhas pernas.
Rodopiávamos, assim abraçados e ríamos. E nos beijávamos.
De olhos abertos, olhando o dentro, procurando os segredos escondidos no fundo dos olhos.
E íamos mais fundo no dentro do outro, até sermos um dentro do outro.
Pelos olhos se começa a paixão, depois se espalha pelo corpo todo.
Teu mapa, percorria com minha boca, tua língua percorria o meu.
Tuas mãos em concha sobre meus seios, minhas mãos prendiam teus braços.
Teus dedos acariciavam minha pele, provocavam arrepios e inundações.
Enquanto me beijavas os seios, te beijava a cabeça.
Enquanto te beijava o ventre, me beijavas as costas.
Nossas narinas dilatavam, nossa respiração acelerava.
Nossos corpos trocavam calor, nossas línguas trocavam desejos.
Tinhamos a intimidade dos despudorados, tinhamos a delicadeza dos tímidos.
Tinhamos a generosidade do afeto, tinhamos a fúria da urgência.
Provávamos nossos gostos, sentíamos nossos cheiros, trincávamos os dentes e ríamos. Ríamos muito, juntos.
Meu coração batia por todo meu corpo, teu coração batia dentro de mim, éramos um só corpo, um só coração, uma só vida e um só instante de eternidade.
Sentia teu prazer, me davas o meu. Nos beijávamos, felizes, esgotados.
E o mundo parava, testemunhando a completude de nosso amor.

Abria os olhos prá te ver, hoje, fecho-os prá te lembrar.










PAS DE UN

Um, dois... vinte e oito... setenta e nove...mil e seis...mil trezentos e quarenta e três...dois mil novecentos e noventa e nove, três mil carneirinhos contados em, aproximadamente, vinte e sete minutos. E nada do maldito sono aparecer.
Esses carneirinhos atrapalharam, não conseguia parar de contar!
Via-os pulando a cerquinha, um a um, em fileira.
O três mil e um já estava à postos quando abri os olhos e disse: chega, assim já é demais!
O pobre deve ter ficado congelado no salto abortado.
Me senti culpada por não ter dado à ele a chance de se exibir.
Acho que a falta de sono está me deixando maluca, me sentir culpada por um carneiro imaginado!
Olho o relógio pela milionésima vez e só passaram dois minutos desde a última olhada.
Levanto da cama, pego um livro chatérrimo e uma cerveja gelada.
Já que não bebo, o efeito seria rápido: livro porcaria + cerveja= sono instantâneo.
Cheguei à página oitenta, bebi duas cervejas e não aconteceu absolutamente nada.
Resolvo dançar, cansar o corpo. Coloco "O lago dos cisnes", calço minhas sapatilhas de ponta, já que fui bailarina. Minha memória corporal me traz de volta, pliés, jetés, fouetés, pas de burres, pas de chats, piruetas, arabesques. Meus braços e pernas adquirem vida própria. E danço "O Quebra Nozes", "Copélia", coreografias memorizadas. Meu corpo excitado responde com adrenalina e danço como se não houvesse amanhã. Suo, alongo, tiro as sapatilhas e massageio meus pés. Poder dançar, depois de tantos anos, o corpo obedecer, sem muita dificuldade, me alegra. E alegria, vocês sabem, tira o sono. Má idéia testar capacidade física nessa hora.
Tomo um banho quente, pelando, dizem que ajuda...aos outros, seres normais. Eu, como sou anormal, só consegui ficar cheirosa. Menos mal. Gosto de mim cheirosa. E eu estava insuportávelmente cheirosa.
Não aguentei ficar em casa, tinha que sair.
Me preparei como se fosse a uma festa. Me maquiei, prendi os cabelos, botei meu vestido vermelho, colado ao corpo, saltos altos, perfume suave, entrei no carro, música em alto volume, janelas abertas, senti o frescor da noite.
Respirei profundamente, exalei suavemente o ar quente que saia de minha boca. Beijei a noite.
Rodei um bom tempo, na solidão da alta madrugada.
Tão bom ter a cidade só prá mim. Ruas vazias, nenhum trânsito.
O dia começava a amanhecer, a cidade estava prestes a despertar, hora de voltar.
Entro em casa com as sandálias balançando em dois dedos, afago meu cachorro, tomo café, tiro a maquiagem, o vestido e nua, me deito. As cobertas me envolvem, me aquecem, me acariciam.
Engano o sono, atrasando o relógio. Voltei à uma hora da manhã, roubei cinco horas do tempo.
Não perdi o sono, ganhei uma noite de puro prazer, solitário, é verdade, mas não se pode ter tudo.



domingo, 27 de maio de 2012

À MINHA IRMÃ

Era linda.
Sempre chamou atenção pela beleza. Beleza clássica, incomum.
Mas era triste, de uma tristeza que doía em quem a conhecia.
Nunca soube o que fazer da vida, não aprendeu a ser.
Era grande, alta e larga, e tão pequena, desprotegida.
Tentava não ocupar espaço, tentava ser invisível.
Não queria contaminar os outros com sua dor.
Dor existencial, dor de tanta solidão.
Amava tudo, amava todos, não escolhia, amava.
Se foi amada, nunca soube, nunca ouviu.
Era generosa, doava-se, talvez na intenção de sair de si, de viver no outro.
Ria e se escondia no riso, forçava felicidade.
Gostava de sair, esperando esbarrar em possibilidades, pequenas que fossem.
Fantasiava com essa vida emprestada.
-Quando eu for..., quando eu tiver..., quando eu puder..., e outros quandos que nunca vieram.
Nunca, foi seu quando.
Atava-se às filhas prá não ficar à deriva.
Dava todo seu amor estocado à elas, à neta, aos amigos, à família.
Perdia sua identidade, mesclava-se, sumia.
Tinha essa beleza triste, sofrida, machucada por tanto nada que teve.
Seus olhos mostravam a descrença, poucas vezes brilharam.
Perdeu tempo, contando os dias.
Perdeu dias, contando as horas de inquietação.
Perdeu horas tentando entender onde estava seu erro.
E seu erro era não acreditar que merecia ser feliz.
Era, essencialmente boa, uma bondade que chegava a incomodar.
Acreditava em tudo e a todos perdoava, herança paterna.
Carregava-se como um fardo, pesava-lhe existir.
Se despediu da vida assim que nasceu, nenhum mistério nisso, nos dirigimos à morte desde que saímos do ventre materno.
Mas tentamos sobreviver com planos, metas, sonhos. Ela, não.
Fingia com seus "quando" que estava presente à vida.
Tinha uma melancolia atávica, entranhada em seu DNA.
E de dor em dor, dia após dia, esperou.
Esperou o amor, o abraço, o aconchego, esperou o sentido de sua vida.
E a vida passou por ela sem notar sua presença.



ALERTA

Insônia,
inapetência,
taquicardia,
ansiedade,
pensamento obsessivo,
sudorese,
estômago habitado por borboletas,
tensão,
stress.

Definitivamente, amar faz mal à saúde.

COMIGO ME DESAVIM

Andei brigada comigo. Me desaforando. Me chamando prá briga.
Estava de mal comigo. Me dei os dedos mindinhos, como quando era criança e trocava de mal com o amigo.
Não me olhava no espelho, não queria nem ver a minha cara.
Me chateei comigo, me disse coisas bem rudes e nem me desculpei.
Me chamei de burra, eu que sou até inteligente.
Me destratei, me xinguei, me aborreci prá valer, comigo.
Esqueci que sou minha amiga e me falei verdades cruas.
Me disse: quem é você prá acreditar no amor? Você já passou da idade!
Me respondi: mas amor tem idade prá acontecer?
E me falei, sem piedade: isso é coisa de gente jovem! Repara nas suas rugas.
Não bastava me repreender, tinha que me derrubar.
Briguei comigo porque me aventurei no amor, acreditei ser possível que alguém me amasse.
- Pera lá, me disse. Com tanta mulher bonita, jovem, esperando pelo amor, você realmente acredita que vai acontecer com você?
Tímidamente, me respondi: por que, não? O amor não escolhe, surpreende.
Me olhei com cenho franzido, e de minha boca sairam palavras que me atingiram o estômago como um soco.
- Você se ilude. Coisa de mulher de meia idade. Quer se sentir viva prá enganar a morte!
Confesso, baqueei.
Era isso que tínhamos? Pretexto prá tentar negociar com a morte? Últimos estertores? Último desejo? Extrema unção?
Tentei reagir, me dizendo que: não, não foi isso que eu tive, não pode ter sido só isso!
Me ataquei, de novo: deixe de ser besta, você foi usada e descartada. Rei morto, rei posto! Alguma dúvida? Aposto que, nesse momento, outra já tomou o seu lugar. Existem milhões como você, disponíveis, loucas prá serem enganadas, prá acreditarem que são especiais. Burra!
Me esfreguei na cara a impossibilidade de ser recortada e destacada na vida de alguém.
Briguei comigo, já nem sabia quem era a que atacava ou a que defendia. Era eu, comigo, misturando papéis. Saí no tapa. Desferi golpes baixos, chutei minhas canelas, me puxei pelos cabelos.
Me cobri de hematomas, sangrei meus lábios, feri meus brios e arrebentei meu amor próprio.
Fui ré e juíza, vítima e algoz, me embaralhei comigo.
Passei uma semana sem me falar, por fim achei que aquela desavença tinha que acabar.
Me procurei prá conversar comigo.
De início me fiz de ofendida, relutei em aceitar as pazes.
Tinha me dito coisa cruéis, me descuidei da delicadeza que podia ter tido, me tratei como uma qualquer, e não sou, sou eu, tinha que ter me tratado com mais cuidado. Me bati e apanhei de mim, perdi a elegância, perdi as estribeiras, perdi o juízo.
Fui ao espelho, me olhei dentro dos olhos, fixamente, me encarei sem máscara, sem defesa, éramos eu e eu mesma, nos reencontrando.
Me disse: ele dizia que meus olhos era o que ele mais gostava em mim.
Me respondi: porque você o enxergava, de verdade.
Falei-me: não me maltrate, me ajude. Ainda dói.
Toquei meu rosto refletido no espelho, me acariciei e chorei comigo.
Você tinha razão, me disse. Eu quis sonhar, voar alto, esquecer de mim, me entregar.
Me abracei e me perdoei por ter sido, por algum tempo, a mentira que criei prá mim.
Ainda estou estremecida comigo, juntando os pedaços que arranquei de mim.
Mas vou sair das cordas, da lona, do ringue.
E quando estiver inteira, vou viajar comigo.
Me prometi não me trair nunca mais, me comprometi a recolher e guardar as asas que achei que me pertenciam.
Hoje eu sei que asas são prá pássaros, gente como eu, que não pode voar, tem que cuidar do chão onde pisa e evitar escorregões.
Na minha idade, posso quebrar o fêmur!

sábado, 26 de maio de 2012

PEDRA SOBRE PEDRA


"No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho..."
Carlos Drumond de Andrade.

E, apesar disso, temos que prosseguir.
Tropeçando, pulando, pisando, desviando, retirando, ignorando, valorizando, cada um escolhe como lidar com as dificuldades que surgem.
Eu, particularmente, paro e lido com ela.
Em alguns casos, é pura perda de tempo, em outros é parada obrigatória.
Há casos em que as pedras são colocadas como armadilhas, um teste de resistência.
Quando a pedra é muito grande, pode fazer estragos consideráveis.
Mas como fingir que ela não está ali? Não consigo, tenho que me deter diante dela.
Pedras grandes demandam mais tempo, a remoção é mais demorada.
Mas, como água, vou de encontro à ela, suavemente, até tirar-lhe as arestas.
Envolvo-a em um abraço, até penetrar nela, criando fragilidade, porosidade.
Enfrento de dentro prá fora, mergulho na escuridão, buscando a fresta de luz que me guiará prá sair do outro lado.
Só assim, consigo remover a pedra no meu caminho.
Não digo que é fácil, digo que é necessário.
Não aceito que pedras bloqueiem minha estrada, mas não ignoro.
Vou catando pedras como quem cata feijão.
Cozinhando as dificuldades, me alimentando de soluções.
Assim é a vida, entre pedras, até encontrar um diamante.
Uns acham, outros perdem, a maioria não consegue distinguir o que é um e o que é outro.
Não sou gemóloga, não tenho facilidade de reconhecer um diamante, mas não descarto as pedras, recolho-as, guardo-as, se não tiverem valor, coleciono-as.
Assim como debulho o feijão, garimpo pedras, não importa o tamanho, sempre terão serventia.
Ao menos, me provarão que não me acovardei diante do mais forte.
E me lembrarei sempre que, antes de Carlos Drumond, Fernando Pessoa dizia:
"Pedras no caminho? Guardo todas. Um dia, vou fazer um castelo..."

FACES


Essa sou eu, solar.
Por mais que a noite queira se impor,
meu sol volta a brilhar.

Essa sou eu, fruta madura,
macia por dentro, protegida
por casca dura.

Essa sou eu, primavera,
onde flores renascem
sem longa espera.

Essa sou eu, esperança,
cuidando de mim,
escolhendo a lembrança.

Essa sou eu, viajante,
não importa o caminho,
sigo adiante.

Essa sou eu, combatente
de lutas inúteis que
me tornam resistente.

Essa sou eu, transparente,
cristal por mim lapidado,
e porisso, diferente.

Essa sou eu, minha seta,
meu arco, meu alvo,
minha própria meta.

Essa sou eu, a que acredita
que a vida é mais do que
a que me foi dita.

Essa sou eu, curandeira,
que lambe as próprias feridas,
e se faz, de novo, inteira.

Essa sou eu, feiticeira,
criando poções, magias,
fazendo de mim o que queira.

Essa sou eu, destemida,
sem passado, sem futuro,
sendo o presente da vida.



quinta-feira, 17 de maio de 2012

DE BABEL E DE MARFIM

Caminhava olhando para os pés, queixo colado ao peito, como se nada mais pudesse ver de novo.
Não olhava para os lados, o periférico sumira, envolto em certezas arraigadas.
Todo entorno, já sabido, igual.
Sonhos, todos já sonhados e não realizados. Vida, contemplada pelas janelas dos olhos.
Nada restava, igual ou diferente, além do conhecido.
Caminhava distraída, envolvida em sua solidão, já amiga.
Tinha a si mesma, como companheira e cúmplice, no desperdício da existência.
Todas as paisagens apagadas, todos os sentimentos domados, todas as vontades e esperanças adormecidas, todo o corpo anestesiado e toda a tristeza que carregava, empurravam aquela mulher frágil para o cotidiano, mecânico e previsível.
Caminhava sabendo o futuro, pitonisa de sua sorte, prevendo guerras interiores, embates fratricidas, recriações de si mesma e demolições de cada torre erguida. As de Babel e as de Marfim.
Á cada passo, incorporava uma falta, de si, de algo, de alguém.
O caminho parecia, à cada dia, mais longo, mais difícil, mais íngreme. Cadafalso.
Nada esperava, nada mais desejava, senão o fim daquele caminho tortuoso.
Nada esperando, aconteceu o inesperado.
Olhando seus próprios pés, vislumbrou outro vulto, uma sombra que caminhava ao seu lado.
Ouviu ruídos de outra respiração, sentiu o calor de outro corpo.
Apressou o ritmo de suas passadas, acreditando estar imaginando para si, uma companhia.
Passos apressados a acompanharam e se aproximaram.
Tentou resistir àquela visão, apertando os olhos, cravando as unhas na palma da mão.
Assustada, ergueu a cabeça, abriu os olhos, fosse o que fosse, seria passageiro.
E lá estava ele, você, olhando sorridente, ofegante, estendendo a mão, convidando para dar um passeio em outra vida.
Com medo de que fosse uma trapaça de seu desejo inconfesso, rejeitou a oferta, buscando, na negação, seu refúgio.
Ele, você, postou-se á frente do caminho, cortou qualquer desvio, impôs sua presença.
Mostrou que o caminho que ele, você, escolhera era mais largo, com novas paisagens, novas cores e perfumes. Mostrou que a vida podia ser diferente, acompanhada.
Tomou-lhe as mãos de conforto, encheu-as de afeto, levou-a prá dançar, levitar, sentir.
Deixaram para trás todas as correntes que aprisionavam, todos os muros que escondiam e todos os carcereiros que ela criara.
Ele, você, deu alma ao corpo frágil, envolveu com suas asas aquela mulher que não sabia voar.
Ele, que era passageiro, não passou. Você, ficou.





quinta-feira, 3 de maio de 2012

CAMPEONATO

Vai começar a partida.
Início de jogo é sempre de provocações, escondendo o respeito e o medo.
Tentamos desestabilizar a segurança do adversário, usamos as armas da retórica.
Ao irmos para o meio do campo para começar a partida, nos olhamos em desafio, lados opostos, imaginando o que vai acontecer e, claro, querendo ganhar o jogo.
E começa o clássico, EU X VOCÊ.
Vou rolando a bola, você marcando em cima.
Dou um passe prá mim mesma, mato no peito e avanço com a pelota controlada.
Você me rouba a bola e dispara em sentido contrário.
Corro atrás, tento retomar a redonda, tento uma, você escapa, tento duas, você consegue retomar, tento três e faço falta.
Você ri e cobra, mandando a bola prá você, já centroavante.
Disparo prá posição de zagueiro, me coloco e você chuta.
Pontaria errada. Ansiedade demais faz errar o chute e é tiro de meta.
Goleira que sou, me preparo prá lançar a bola para o campo adversário. Chuto e corro prá chegar à ela, recebo e rolo, com o peito do pé, olhando prá trás prá medir à que distância você está.
Deixo que você se aproxime e te driblo, e dou chapéu e passo-a entre suas pernas, levanto a bola com um bico e faço com que ela caia, maciamente nos meus pés atacantes, chuto com precisão mas você faz uma extraordinária defesa.
Se abraça com ela no gramado, protegendo-a de mim.
Espera que eu me afaste um pouco e lança-a com as mãos prá si mesmo, lateral esquerdo, sua posição inconteste, seu domínio.
Me atrai prá brincar de gato e rato, ri frontalmente de meu esforço prá roubar a bola, ladra que sou.
E passa por mim como um foguete, me fazendo comer grama e escorregar.
Vai em velocidade, sem que eu, meio de campo ou zagueira, consiga te reter.
E me vejo goleira, frente à frente, com você, que dá uma paradinha antes de chutar à gol.
Espero ofegante, com os olhos esbugalhados e fixos o potente chute, quando soa um apito e te coloca em impedimento..
Você xinga, esbraveja, reclama, eu rio, alivio, respiro.
Impedimento benvindo.
Cobrado o impedimento, a bola é atraída por seus pés que a controla, pisa nela e escolhe a jogada por fazer.
Lança um olhar e percebe as traves desprotegidas, chamando por um gol certeiro e chuta, em curva, sem dificuldade prá acertar as redes.
E é gooooooooooooooooooooooooooollll!
Golaço! De craque, que você é.
Atinge de supetão, com precisão, jogada ensaiada e previsível.
Nesse momento, me convenço que sou time de várzea, me esforço, treino, mas não sou nenhum craque.
Tenho que respeitar medalhão, o que conhece o jogo, o que dedicou sua vida a jogar e que quer ganhar.
Aprendi a perder no jogo, sem desculpas.
Sou perna de pau, vivo contundida, perco nos dribles e não ganho nem um ponto. Unzinho, que seja.
Mas quando tiro as chuteiras e coloco o salto agulha, ninguém ganha de mim. Sou rainha.
E, apesar de jogar mal demais, jamais cavei penalti, nunca fiz catimba e sempre cumprimentei os adversários pela vitória.
Minhas partidas sempre terminam com o respeito que o outro time merece.
Tiro o uniforme suado e sujo da batalha que perdi, tomo um bom e revigorante banho, e me preparo para o próximo jogo.
Possivelmente, perderei mais uma e mais outra e mais centenas de vezes.
Mas sou imbatível no fair play.