segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O VIOLONCELO

Admiro quem toca um instrumento, qualquer um.
Mais que admiração, tenho inveja. Assumo.
Adoraria ter aprendido música.
Aprendi canto orfeônico e achei um saco, até porque não tenho voz nem volume prá cantar.
Minha voz está mais prá sussurrar do que prá trinar. De passarinho não tenho nada, sequer a afinação. Ficava lá, abrindo e fechando a boca, enganando as notas.
Aprendi um pouco de piano quando não devia, não tinha maturidade e nem foi minha escolha.
Hoje, percebo a oportunidade perdida. Acontece.
Tinha aulas em casa e, como não era o que queria, seduzia o maestro com todo tipo de elogios.
Elogiava suas mãos, pedia que ele tocasse prá mim, fazia cara de enlevo e ele se entusiasmava.
Eu tinha nove anos e já brincava de atriz.
O maestro, que devia ser um pianista frustrado, tinha em mim a platéia que ele precisava e, sem saber, me apresentando aos clássicos, me fez gostar de Chopin, Mozart, Rachmaninoff, Tchaikowski, meu favorito. Despertou em mim outras possibilidades, outra sonoridade, me mostrou o adágio, o allegro e outras variações. 
Meus pais jogaram dinheiro fora, eu não saia das escalas, em compensação meu gosto musical ficou mais exigente, mais sofisticado, mais apurado.
Mas, ainda assim, não aprendi a ler música ou tocar o instrumento que queria: cello.
Meus queridos pais preferiram entulhar a sala com um piano a me dar um violoncelo.
Eles diziam que cello não era instrumento para moças, que era pesado prá carregar e exigia força.
Pergunto: piano se carrega nas costas? É leve? Achamos piano em qualquer lugar? Preconceito!
E qual instrumento é mais feminino do que o cello?
É um instrumento que exige que você o abrace, que seu corpo encoste nele, que seus dedos o façam vibrar, que cobram  energia e, às vezes, suavidade. Seu som é grave, meio abafado, forte, potente. As pernas entreabertas envolvem, seguram e sentem a música reverberar pelo corpo. O rosto se encosta na madeira como que oferecendo o ouvido ao segredo.
Quando tocado com arco, há que se ter delicadeza, cuidado prá não romper os fios do arco ou as cordas do cello.
O cello é a analogia perfeita do amar o outro, cuidar do outro, extrair do outro, com cuidado, seu melhor som. É o calor do aconchego, o prazer do toque, a repercussão do grave que vibra e quebra geleiras provocando avalanche.
É um instrumento para poucos, escolhidos por ele. Tenho prá mim que ele é sábio, se mistura a orquestra prá não chamar atenção sobre o seu poder de sedução, cello é um perigo!
Perigo prá quem ousar se aproximar, perigo prá quem tentar entrelaçar suas pernas nele e pretender domá-lo.
Cello é prá pessoas que têm coragem de encarar a estiva que ele exige, de dedicar horas à perfeição, de se perder no abraço que ele cobra.
O corpo dói ao carregá-lo, cansa com o esforço que se faz prá tirar dele o prazer escondido nas cordas, sua de exaustão ao término da sinfonia.
Melhor parar por aqui, não sei mais se estou falando de violoncelo ou se já fui parar em outra dimensão.
Percebi, nesse instante, que o que eu queria era ser abraçada, ouvida, tocada, cuidada por alguém que conseguisse criar música em mim.
Cello, céu, violoncelo, vasconcellos, eu, violoncellos.
Rendo-me às evidências: o que eu queria, mesmo, era ser um violoncelo!