domingo, 20 de abril de 2014

...QUEM QUISER QUE CONTE OUTRA


A Cinderela e seu Príncipe são o ideal que as meninas perseguem, até hoje.
Acreditam que vão transformar aquele ogro em um exemplo de cavalheiro.
E eles acreditam que surgirá daquela caça dotes, uma mulher perfeita.
Até pode acontecer, dependendo do humor dos astros que chancelarão aquele encontro, mas a probabilidade de continuar o sonho é quase nenhuma, depois de algum tempinho. Cinco dias, talvez, é o suficiente para que o pesadelo se instale.
Ele vai perceber que seus "dotes" estão no banco, rendendo juros que abrilhantarão os dedos de sua amada, cobrirão seu corpo de sedas importadas e que, para descobrir o que a seda cobriu, será necessário mais juros e mais "renda".
Ela descobrirá que seu amado é sovina, controlador e grosseiro. Que o Príncipe cuida do seu reino e de sua Princesa com mão de ferro. Afinal, ele detém o poder e ela contém a dissimulação.
Onde foi que entrou o amor nessa história? Depende do ponto de vista. O dela seria o amor ao que o dinheiro pode proporcionar, o dele seria o amor pela vitrine que o permite ser visível ao lado de uma mulher bonita e, possivelmente, bem mais jovem.
Típico amor- troféu que tanto vemos por aí.
Se iludem, achando que transmitem credibilidade, quando o que se vê é o ridículo deste par improvável.
Acho que imaginam que travestindo o interesse por amor, enganam os trouxas. Faz-me rir!
Já repararam que, principalmente o homem bem mais velho, se acha o garotão mais sexy da face da terra, ao cruzar com uma ninfeta interesseira? Quer acreditar que são seus "dotes" físicos e intelectuais que atraíram aquele esplendor de juventude. Me poupe. Das duas, uma: ou ela tem carência da figura do avô - nem é do pai que estou falando - ou é golpe do baú.
Alguém acredita, de fato, que é possível uma pós adolescente amar, desinteressadamente, um setentão? Só se for uma debilitada mental que tem fixação em doenças senis! E quando elas aparecerem - se é que já não se instalaram - se verá o tamanho do afeto em contraposição as "ites" e aos "ismos". A saber: artrite, bursite, prostatite, reumatismo, etc. E mais: surdez, vista cansada, perda de reflexos, esquecimento, doença cardíaca, pressão alta e libido baixa, diabetes. Ou está pensando que tudo são flores e que uma boa enfermeira resolve?
Vai se perguntar por que o sapo continua sapo e não virou príncipe ao primeiro beijo. Pode ficar tentando, achando que no segundo, terceiro, vigésimo, milésimo beijo, a mágica vai acontecer.
Péssimas notícias: não vai acontecer nunca.
E quando a história que guardamos na memória, nunca aconteceu, de fato? Ou aconteceu com outra pessoa e roubamos a história? Ou com pessoas diferentes das que insistimos em reter na memória?
Sempre contamos histórias fabulosas de um passado repleto de acontecimentos heróicos, grandiosos, cinematográficos.
Criamos a fantasia e acreditamos. As relações teriam sido com pessoas que, comprovadamente, não existiam ainda, ou sequer passaram por onde as colocamos em nossa mirabolante paisagem afetiva.
Trapaceamos o tempo todo com a memória, sabendo que a memória se engana e nos engana.
Quando ouço relatos de passado de glórias, de admiração exacerbada, de amores que mais parecem saídos da literatura, faço cara de paisagem e peço provas. Geralmente, não existem, por vários motivos. Mas o motivo é um só: cada um se dá mais importância do que tem, achando que será reverenciado pela vida inventada. E assim nascem os grandes prestidigitadores, manipuladores e egocêntricos. Mas é assim, também, que surgem os loucos, tiranos. 
Portanto, muito cuidado quando o delírio criativo se apossar de sua mente.
Faz mal para a saúde dos ouvintes e muito mal para aquele que corre o risco de ser desmentido pelos fatos.
Melhor escrever um livro de ficção e ainda ganhar dinheiro com isso.
Já que é para tirar o pé da realidade, assuma que inventou uma história. Despeje nela todo o recalque por uma vida comum, ordinária, previsível. Encare que o super homem tem medo de barata, a linda manceba tem mau hálito, o vilão é vesgo e nunca acerta o alvo e que o máximo de mundo que você viu, é o que se descortina da janela do seu quarto, levando pessoas que, dentro dos seus carros, passam pela estrada que é a sua mais próxima paisagem.

E entrou por uma porta, saiu pela outra...




quarta-feira, 19 de março de 2014

UM DIA, À CADA DIA.

Tenho a pretensão de achar que me renovo a cada dia.
Renasço, a cada amanhecer.
Quando desperto, sinto que não é somente um novo dia, mas um primeiro dia.
Nada me prende ao passado, a caminhada já feita.
Deixei minhas pegadas por aí, rastros do que fui, vestígios do que fiz.
Não tenho nenhum apego, nenhuma amarra.
Fracassos e sucessos, alegrias e tristezas, amores e rejeições, afetos e desafetos, todos ficaram no desvio da estrada que percorri. Não levo excesso de peso.
O que fui, o que fiz, foi um aprendizado, não preciso voltar à escola para reaprender a traçar minha rota.
Usei régua, compasso, calculei os catetos de minha hipotenusa, soletrei, conjuguei, formei as frases que precisava. Li, escrevi, e criei meu próprio livro. O livro de minha vida.
Fui abençoada, comunguei, pequei, me penitenciei, rezei a oração devida.
Vivi cada fase aprendendo. 
Aprendi a amar, a odiar, a rir e chorar. Aprendi que viver não é fácil nem difícil, é só aceitar os desafios e encará-los. Não fui vencedora em todos os embates, nem perdedora.
Usei as armas que dispunha, feri e fui ferida, mas nunca trapaceei.
Tive meu orgulho ferido, meu ego machucado, minha carne lacerada.
E tive, por três vezes, a benção de ser mãe. Isso já vale toda uma vida.
Nunca procurei ser coroada, notada, recortada na multidão.
Ao contrário, sempre preferi o anonimato, a quase invisibilidade.
Gostava de ser mais uma e não a única.
Os louros de uma vida, só recebemos no fim, quando não há mais tempo de reverências.
Dizem que isso é enterrar o passado, mas acho que é não valorizar o ido e acabado.
Tenho uma vida para viver e ela acontece todo dia, não tenho nenhuma necessidade de trazer o passado para o presente.
Ele está em cada ruga de meu rosto, em cada gesto e atitude, está gravado em minha pele, em minha alma, em minha mente. Não preciso acessá-lo para existir.
Experimento cada dia sem bula, sem bússola, minha experiência me guia.
É só disso que eu preciso, um novo dia, que me leve à novas horas, que me faça respirar e agradecer por tudo que me acontecer. Um dia a mais, uma ruga a mais, um sorriso ou uma lágrima a mais, não importa.
Importa é que estou viva e atenta.
Um dia de cada vez, é assim que quero estar no mundo.
Para mim, basta um dia.


quinta-feira, 6 de março de 2014

MINHA HISTÓRIA

Faltou só um pouquinho e seria outra história a ser contada.
Escapou por um segundo, o momento perfeito.
Ficou por um fio, a esperança de alcançar a felicidade e o fio rompeu-se.
Foi por um triz...
O "quase" é irmão do "se". Gêmeos univitelinos.
Nenhuma história se faz com eles, não fica nenhum registro na memória.
São oportunidades perdidas. Não há lembrança do não feito.
-"Quase" consegui e "se" tivesse conseguido, minha vida tomaria outro rumo.
Possibilidade não realizada, ou seja, nada, nulidade, não acontecido.
Qual caminho minha vida teria tomado se tivesse feito outras escolhas, como seria, como estaria, com quem?
Quais arrependimentos teria? Estaria melhor? Pior?
"Quase" e "se", não formam bagagem. São modos de perpetuar os questionamentos por escolhas, certas ou erradas.
Da mesma forma, o "quando" e o "talvez", brincam com nossos desejos.
-"Quando" tiver coragem, "talvez" meu sonho se realize.
O que não foi, jamais terá a chance de ser. O que virá, será ou não.
Nada muda uma vida já vivida, tudo pode mudar no vir a viver.
Se a vida fosse um plano perfeito e acabado, qual graça teria?
Arrependimentos são tão importantes quanto certezas, se não mais importantes.
Certezas aprisionam, arrependimentos impulsionam o querer acertar a rota.
A grande e imprevisível aventura de viver está em quem construímos.
Colocando em nossa engenharia psíquica e emocional cada tijolo bem assentado, a chance de ruir por terra o arcabouço que nos sustenta é perto do zero.
E nesse contexto, todas as palavras podem ser usadas positivamente, como reforço nessa estrutura frágil.
-"Quase" fui levada pelo maremoto, "se" não estivesse determinada a não ser tragada. E "quando" isso acontecer, novamente, "talvez" ..., não, sem "talvez", terei aprendido. O "talvez" saberá que vai encontrar um paredão intransponível.
Isso é construir uma história de um ser imperfeito e falível, mas com gana de permanecer em pé, assumir suas escolhas, enfrentar sua vulnerabilidade e mesmo assim, abrir o peito, com todas as feridas cicatrizadas e expostas.
E ter o orgulho de dizer: " Essa é a pessoa que construí, essa foi a vida que escolhi, essa é a minha história."





quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

MEUS DOIS PÉS ESQUERDOS


Dois pés esquerdos. 
Meu dia começou assim, com dois pés esquerdos, pesados, arrastados.
Não consigo sequer me olhar no espelho, desvio de minha própria sombra.
Se me derem "Bom dia" sou capaz de responder: "Só se for prá você!".
Saio mordendo canelas, mostrando os dentes.
Sei que vou arrastar correntes, até a noite chegar
Enfim...hoje seria um daqueles dias que poderiam, perfeitamente, não amanhecer.
Calor insuportável, céu sem uma nuvem sequer, dia lindo demais prá meu mau humor!
Enquanto tomava café, na tentativa de levar o dia com ajuda da cafeína, toca o telefone.
- Jesus, não mereço. Sete da manhã e já vem encheção de alguém querendo me vender qualquer coisa?
Não atendi aquele insistente que não desligava. O telefone tocou umas duzentas vezes.
Abri o jornal, mesmo sabendo que as notícias iriam piorar meu humor.
E o maldito telefone tocou, de novo.
Comecei a ficar preocupada. E se fosse alguém precisando falar comigo?
O dia já estava perdido mesmo, resolvi atender.
Pronta prá despejar minha irritação, disse com toda a antipatia do mundo:
- ALÔ!
- Amada, acabei de pisar em solo brasileiro e precisava ouvir sua voz!
- Acho que você ligou para o número errado.
- Que número errado, nada. Me certifiquei que era o seu telefone.
- Se certificou?... Quem está falando?
- Tá sentada?
- Querida, não consigo ficar em pé!
- O que aconteceu com você? Tá doente? Inválida?
- Depende...O prazo de validade está acabando, mas não estou doente. Peraí, quem tá falando?
- IRANY!

Aí, eu entendi porque ela me perguntou se estava sentada. Se estivesse em pé, cairia, mas como estava sentada, dei um pulo e me equilibrei prá não cair. Fiquei, imediatamente, curada de minha invalidez.

- IRANY PASSOS?
- Ela mesma, em carne e osso! Quer dizer, em voz, por enquanto. Ou você conhece outra Irany? Quase impossível!

Meu dia começou, com aquele telefonema. Mudou da água para o vinho.

-Amiga, que surpresa boa. Onde você está?
- Acabei de pousar. Estou no aeroporto, louca prá te ver.

Irany, que havia se casado com um dinamarquês, saiu do Brasil em 1988 e nunca mais voltou. Nos correspondíamos, com frequência, por cartas e depois por e-mails. Nossa amizade nunca ficou no passado.
Sempre soubemos uma da outra, durante esse longo tempo.

- Não sai daí, vou te buscar!
- Não, vou pegar um táxi e vou prá sua casa.
- Sabe chegar aqui? Tem o endereço?
- Endereço eu tenho e o taxista que se vire.
- Vem logo!
- Tô indo. Já!

Irany, minha mais querida amiga, desde a época do Conservatório, estava de volta à minha vida.
Engoli o café e corri para arrumar a casa, tomar banho, queria estar completamente disponível, quando ela chegasse.
E ela chegou! A mesma Irany que eu guardava na memória, barulhenta, alegre.

- Minha rainha Zulu! 

Era assim que eu a chamava, negra altiva e linda.
E nos abraçamos aos prantos!
Nos olhávamos, como se não acreditássemos que estávamos juntas, novamente.

Exatamente nesse instante, o despertador tocou, me trazendo de volta de meu sonho.
Meio zonza, entre o sonho e a realidade, abri os olhos e lá estava o dia lindo, azul, com um sol imenso.
Meu dia ia começar, feliz, resplandecente. Meu sonho, de tão bom, me trouxe a certeza de que não importa o que está fora. O que você mantém guardado em si é que é o combustível de uma vida que vale a pena viver, todos os dias, com esperança e alegria.
Irany continua na Dinamarca, sem previsão de vir ao Brasil, mas de longe, sem saber, minha mais amada amiga, me deu de volta o sorriso que ela escancara e a esperança de que todo dia será o melhor dia de minha vida.






quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

QUER SABER ?

Cansei!
Cansei das patrulhas, sejam quais forem, das cobranças de faturas de vidas passadas, do planejamento futuro. Cansei!
Cansei de tentarem organizar meus dias e pautarem minhas noites.
Sei que sou esquisita, penso por mim e argumento com paixão.
Sou de uma família de mulheres fortes, mercuriais.
Sempre fomos combativas, presentes, não delegamos, fazemos.
Sei que isso incomoda. principalmente aos homens.
Até tentei ser mais frágil, mais dependente, mas o esforço não compensa.
Não peço que façam por mim, se quero, vou lá e faço.
Desde muito jovem, cuido de mim. Sou responsável pelos meus atos. Não transfiro.
Se erro, admito e pago o preço.
Se acho que estou certa, nem Cristo me faz voltar atrás.
Querer me envergar é perda de tempo.
Se quiserem me convencer, argumentem com competência, sem ameaças ou gritos.
Quem grita, além de não ser ouvido, perde a razão. E fica falando sozinho. Ameaças? Não me intimidam.
E a coerência, tão falada e esquecida, depende do contexto.
Como podem me cobrar o ontem, se o hoje é totalmente diferente?
Ninguém é coerente o tempo todo, só os idiotas, que se prendem ao passado para justificar o presente.
E isso não me faz menos digna ou verdadeira.
Ao contrário, me faz não ser falsa e dissimulada.
As pessoas mudam, de acordo com as experiências e costumes que se alteram, rapidamente.
Adquirem novos hábitos e comportamentos, e isso é evolução.
Neste tempo em que vivemos, onde a cultura e a informação são mais ágeis do que podemos acompanhar, se não acelerarmos, seremos ultrapassados.
Desde que não agrida meus valores éticos e morais, por que não mudar?
Não vou ser jornal de ontem no lixo, prefiro ser lida à cada dia.
Acontece que eu dou muito trabalho, inclusive à mim.
Então, fica mais fácil tentarem me ordenar de acordo com suas necessidades.
Melhor economizarem o tempo e o verbo.
Além do mais, sou teimosa e rebelde.
Por fim, fica o aviso: Não ultrapassem a cerca! Usem a porta de entrada, quando forem convidados!
Chega, cansei!


sábado, 15 de fevereiro de 2014

NO PRINCÍPIO, ERA O VERBO.

Não procurava só a palavra, procurava o significado exato.
A palavra surgia, então.
Sempre buscou se fazer entender, não deixar nenhuma margem de interpretação errada.
Assim, começava seu mundo, com o controle da palavra.
Era a comunicação essencial que permitia o entendimento.
Pautava suas emoções e acordava com seu sentir, fazia com que fossem uma única manifestação, apresentava-os, um ao outro, para que exprimissem, sem dualidade, o que representavam.
E verbalizava, com precisão, seu raciocínio.
Não temia a exposição, era assim que devia ser, se queria a verdade, quase que exata, do que sentia ou pensava.
Tratava a palavra com cuidado, seu preciosismo era raro.
Reverenciava o verbo, lapidava o texto, enxugava excessos, tinha obsessão pela essência.
Era minimalista, na vida.
Só permitia que sua mão escrevesse o que fosse, absolutamente, objetivo, conciso, primordial.
Sabia que não era adjetivo, não usava superlativos.  Era substantivo.
Entendia que a simplicidade era mais forte e imponente que o rebuscado. E, significativamente, mais rica que o verborrágico discurso vazio.
Não pretendia parecer culta, não precisava ser vista como a mais inteligente.
Queria, simplesmente, escrever. Com a força, única e exclusiva, da palavra exata.
Sintetizava e concretizava.

Um dia, a poesia bateu-lhe à porta. Sem pedir licença, entrou em sua vida.
E palavras jorraram no papel, sem controle.
Perdeu o domínio sobre elas. Era como se tivessem vida própria.
A rebelião das palavras, por tanto tempo contidas, a fez refém.
Em um transe, quase mediúnico, transbordou seu represado rio de palavras e inundou folhas de construções, antes impensáveis.
Constatou que escrever é, antes de mais nada, deixar que o solo encharque e absorva o que for necessário, elimine o supérfluo, irrigue o suficiente. 
Coloriu as imagens, oxigenou a narrativa, deu vida às personagens.
E viveu através delas. 
Como se fossem reais, criou histórias para elas e desenvolveu-as, como se as estivesse vivendo.
Agora, podia ser muitas, podia ser todas.
Percebeu que a mágica de escrever ou viver, está em permitir-se.
Não ser sempre uma reta, deixa espaço para as curvas.
A comporta que rompeu-se para a poesia, abriu um leito para a dramaturgia, para a crônica, para o romance, passarem livres.
Era isso, viver! 
Desfrutar de cada página ou dia, com a narrativa que não deve ser determinada.
Deixar fluir as águas, não criar barragens e acreditar que o sentido disso, fica para o final.
E se, por acaso, não souber como amarrar tantas vidas e histórias, acreditar que viveu um realismo fantástico, onde nada precisa fazer sentido. senão viver.

 Como na literatura, há que se ser livre, permitir-se possibilidades de leituras diferentes, emprestar situações não convencionais à realidade, sair da zona de conforto e adentrar o improvável.

Era um perfeito haicai, no começo.
Hoje, sem roteiro definido, é protagonista de uma obra aberta.
Até que uma palavra definitiva se imponha.

FIM.








quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

GRADUAÇÃO

Agora é tarde.
Não tenho mais tempo, nem energia prá desperdiçar.
A vida coloca armadilhas, testa a paciência.
Não tenho mais vontade de persistir.
Erro atrás de erro, ensina.
Aprendi, boa aluna que sou, que insistir no mesmo erro, só faz perpetuar o desacerto.
Achava que poderia transformar, ao menos modificar, a realidade.
E a realidade é o que se apresenta, não o que se quer ver.
Embotei, ceguei, reabri feridas, na esperança vã de moldar minha felicidade.
Demorei a entender que ser feliz é estar em paz consigo mesma.
Lutava contra mim, torcia e retorcia a verdade. Negociava com a dor.
Trapaceava comigo.
Corroí minha fé, arrebentei minhas defesas, encarei minha consciência e, enfim, percebi.
Eu era minha traça que, lentamente, roía minhas certezas, abrindo caminho prá que eu me perdesse de mim.
Viver é muito perigoso, preciso estar sempre atenta aos alarmes que soam em mim.
Me fiz de surda e paguei caro.
Agora, vivo em liquidação, soou o alarme, rifo na hora!
Sei que não dou tempo prá acertar o passo, mas é que já caminhei tanto e não cheguei a lugar nenhum, que desisti de ser andarilha.
Hoje, sou trator que prepara a terra, elimino ervas daninhas, fertilizo meu solo, antes árido de prazer.
Achei em mim, minas de ouro e diamantes que sempre me pertenceram e nunca havia explorado.
Comigo, descobri o prazer de me pertencer e me bastar.
Sou eu quem fecha os olhos à noite e durmo comigo. Mesmo acompanhada, meu sono é só, é meu.
E se, porventura, sonho, ao abrir os olhos no despertar, separo o sonho em uma dobra do tempo e vivo a realidade.
Se dói? Às vezes, mas passa. Ao contrário da dor latente e constante do sonhar acordada.
Por isso, é tarde.
Tarde prá que me diga que tudo mudou, tarde demais prá acreditar, novamente.
Mas, devo confessar, tive o melhor professor, o mais competente mestre em ilusões.
Que me pós graduou em administração de minha própria vida.
Já sou master e vou me doutorar em viver bem e às minhas custas.
Poupei o suficiente prá viver de meus juros afetivos.




sábado, 8 de fevereiro de 2014

O CAMINHO EM MIM

" Se essa rua, se essa rua fosse minha,
eu mandava, eu mandava ladrilhar,
com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante,
só pro meu, só pro meu amor passar..."
( Cantiga de Roda ).

Meu caminho é acidentado, íngreme, quem quiser percorrê-lo, pode se machucar.
Sei que é preciso tenacidade, determinação, prá chegar à mim.
Não sou fácil, não sou leitura dinâmica, dou trabalho.
Quem achar que pode passar os olhos, rapidamente, por mim, vai ficar na leitura rasa e sou prá leitor atento.
Sou estiva, sou complexa, sou mulher.
Não faço jogos, nem sei jogar.
O que se vê é o que se tem.
Não levo desaforo prá casa, compro briga e pago à vista.
Tento ficar longe dos atritos, mas não fujo da raia.
Respeito na mesma medida em que sou respeitada.
Não sou caminho do meio, sou estrada de mão única.
Se vou, vou com certezas, detesto contra mão.
Erro algumas entradas, mas sempre acho a saída.
Tenho declives perigosos, em contrapartida tenho aclives suaves.
Não forço a marcha, reconheço o limite de velocidade que o momento pede.

Se eu pudesse mudar minha paisagem, seria uma estrada em linha reta, infinita e bem pavimentada, prá que pudesse ser percorrida em segurança, com o horizonte claro, a música perfeita, o tempo ideal.
Seria ensolarada, talvez estrelada, seria viagem de férias.
Seria brisa, não ventania. Seria refúgio seguro.
Teria relva em mim para o seu descanso.

E teria retorno, possibilidade de acertar o caminho errado.

" Se eu fosse essa rua, 
se eu fosse... 
mas não sou".






terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

SENHORA DE SI

Era de amanhecer e anoitecer.
Pela manhã, despertava com a noite nos olhos, com o corpo entorpecido, com a mente adormecida.
Limpava os vestígios da vigília, nutria o desejo.
De manhã, era de servir a mesa, alimentar o corpo.
Respirava sol, esquentava a pele, se preparava.
Era senhora, de dia. Mantinha o prumo, domava a loucura, exercia a sensatez.
Varria o tapete, lavava as taças, secava as lágrimas.
À tarde, começava a anoitecer.
Abria o bar, trocava a pele.
Banhava o corpo, prendia os cabelos, se buscava no espelho.
Os olhos, antes semicerrados, se abriam, deixavam a luz e o brilho entrar.
Pintava a boca e bordava o corpo.
Era quando a outra chegava, de mansinho.
Primeiro, menina, desnudando o corpo, revelando mistérios, aprendendo a se transformar.
Depois, mulher, não mais a que servia a mesa, mas a que devorava a vida.
Quando a noite chegava, estava desperta.
Inspirava lua, expirava vento.
Livre da senhora do dia, podia ser a dona da noite.
E, finalmente, soltava os cabelos e a fera.
Desfazia a cama e os nós.
Pisava no tapete limpo pela senhora, deixava pegadas de fogo, marcava a pele com dentes e língua.
A lucidez, varria. A alma, lavava. A pele, ardia. O desejo, queimava.
Mordia o lábio, cravava as unhas, aguava o corpo. 
Fazia chover, guardava o segredo, confessava pecados.
Descobria caminhos, invertia a ordem.
Enchia as taças, bebia o vinho e lambia o mel.
O sal do dia era esquecido, as lágrimas viravam suor.
Despudorava, enlouquecia.
De dia, vagava em território conhecido.
À noite, cavalgava sem destino.
E chegava ao seu lugar.
Quando amanhecia, guardava a noite.
De dia, anoitecia.
À noite, vivia.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A VOLTA

Pois é. Mordi a língua.
Voltei a este espaço, em busca de escape.
Tenho vontade de escrever e como escrevo, basicamente, prá mim, pensei:
Quer saber, ninguém vai desconfiar que retomei o blog.
Voltei, mais para desentulhar as palavras que se aglomeravam em minha cabeça.
Gosto de reler o que escrevi, tentando retomar a emoção daquele momento. 
Na maioria das vezes, me surpreendo negativamente, me pergunto: Como foi que escrevi isso? Por que? Que raio de exposição é essa? 
Bem, me exponho à mim mesma, então...
A vida tem caminhado de uma maneira estranha e eu ando estranha.
Ando me estranhando com ela.
Viver tem sido um desafio, de uns tempos prá cá.
Não que eu reclame, nem tenho esse direito, a vida continua me dando o que eu preciso prá acrescentar entendimento, paciência, resiliência, aprendizado.
Mas ela podia me dar um refresco, de vez em quando.
Não sou uma pessoa de desistir, então vivo no eterno apanhar e prosseguir.
Por vezes, tenho vontade de me encolher e deixar a ventania passar, mas fico na vontade.
Turbilhões varreram minha vida em pouco tempo, um atrás do outro, e confesso, foi duro me manter em pé. Mas consegui, nem sei como.
Marcas sempre vão ficar, para o bem ou para o mal.
Mas, no balanço geral, ando fechando direito as colunas do haver e do dever.
Sei que deixei feridos pelo caminho, eu mesma ando coberta de hematomas existenciais.
Mas, fazendo a releitura dos últimos tempos, não reescreveria nada, faria tudo de novo.
O que me dá força prá continuar é que eu sei quem sou e o que suporto nesse corpinho e alma frágeis na aparência. Não sei o que quero, mas adquiri a certeza do que não quero.
E o que eu menos quero na vida é sofrer, sofrer é prá iniciante, eu sou senior e nesse estágio é mais fácil resolver qualquer pendenga.
Com essa consciência, consigo levantar de minha cama de zinco.
Tombos, acidentes, dificuldades, todos temos, não seria diferente comigo, a forma de lidar com eles é que é particular, de cada um.
Acho que, nesse aspecto, aprendi. Controlo a impulsividade e me dou um tempo para analisar o que seja melhor, não necessariamente o mais fácil.
Mas ando esperançada, sei que o melhor ainda está por vir. E virá!
Vida, louca vida, dizia Cazuza. E nesse hospício, não quero saber se sou a louca que se acha médica ou a médica que está enlouquecendo. Vou surtando, deixo a loucura me pegar de frente, porque os loucos tem a prerrogativa da doença mental.
E o que é a sanidade, senão uma loucura disfarçada?
Então...
Voltei, e espero que essa volta seja o reencontro com minha insanidade contida ou com minha lucidez escondida.