quinta-feira, 15 de setembro de 2011

PALCO

O grande barato de ser atriz, ou de ter sido, é poder viver outras vidas. Melhor, poder criar outras vidas, participar de outras histórias que não sejam a minha.
Mesmo que vivesse 1.800 anos, jamais conseguiria experimentar tantas emoções, enfrentar tantos perigos, ser mil, ser tantas, ser outra.
O ofício do ator é dar corpo e voz as palavras do autor, é, também, sentir e pensar como a personagem.
Uma personagem é construída pelo que diz, pelo que as outras personagens dizem dela, pelo contexto da história, pela busca do conhecimento dessa vida, pelo entendimento e aceitação dessa pessoa que pode ser antagônica. É emprestar nosso corpo e voz para que ela se materialize.
O ator é, um pouco, deus, mesmo que em minúsculas. Cria, constrói, inventa, tenta, molda.
Como uma cebola, ao contrário, vai acrescentando camadas. Uma a uma. Coloca emoção, constrói uma história prá apoiar essa vida que será contada, inventa um passado que possa servir de base a esse ser, tenta se colocar em seu lugar, se molda, se coloca disponível para que essa personagem possa se manifestar, não julga suas ações, empresta seu corpo e suas emoções prá que ela seja, enfim, de carne e osso.
Ser ator é ser mágico, equilibrista, domador, trapezista. É ser todas as dores e alegrias, todos os risos e todas as lágrimas. É viver o inimaginável e, ainda assim, se fazer acreditar.
Que outra profissão permite que você saia de si? Perca o autocontrole e ache o outro?
De tanto viver outras vidas, passa a entender a sua, enxerga em cada história da vida real uma riqueza, mesmo que, aparentemente, seja uma vida banal. Nenhuma é.
De tanto ouvir o que os autores querem dizer, começa a perceber outras possibilidades, outros ângulos e treina a percepção do outro. Enriquece a própria vida.
Aceita a diferença, encontra o tom na peça e na vida, desenvolve a sensibilidade, controla seu tempo interior, respeita o espaço do outro, se coloca em risco e se resgata, ou é resgatado.
Algumas vezes é dolorosamente incômoda essa profissão, principalmente quando a trajetória da personagem se mistura a nossa, alfineta nossa memória emotiva, chacoalha e ultrapassa o limite que nos impomos. Ainda assim, prevalece a personagem, muitas vezes com posição contrária a nossa, nos ensinando a respeitar a visão do outro, mesmo que não concordemos.
Outras vezes, lutamos contra as evidências colocadas por elas, buscamos um desvio prá aproximá-las do que somos, tentamos facilitar nosso caminho, mas elas nos puxam as rédeas e nos recolocam no caminho delas.
A ficção tem que ter sentido, mesmo que não aceitemos. Ela tem começo, meio e fim escritos, acabados, determinados. Nada vai acontecer diferente do que está lá. Diferente da vida real, onde não sabemos o que vem depois, onde nada pode ter sentido, onde só podemos esperar o que vai acontecer e reagir ao acontecimento.
Esse é o mistério da vida, ficção não tem mistério, tá tudo lá, você sabe o que será, mas a mágica é caminhar sobre os pés da personagem, visitar emoções diferentes, histórias impossíveis, viver uma pessoa incomum, ser bandido, herói, santa, prostituta, se afastar da sua realidade e, por algumas horas, brincar de sair de si e passear em outra vida.
Honestamente, nada se compara a isso.
Nenhuma personagem é igual a outra, pode ser parecida, mas tem sua própria história, seu passado e temos que trazer sua bagagem até o momento em que a representamos.
É louco esse negócio de ser ator, embaralha suas crenças, mexe com arquétipos, derruba suas defesas, desafia seus medos, desperta emoções que, talvez, não queiramos acordar. Acrescenta, às suas experiências, mil anos vividos através de mil vidas.
O que sou, devo à minha profissão.
Sei que muitas pessoas acham que o ator representa sempre, não sabem se estão, de fato, mostrando quem são ou se estão representando um papel, em outras palavras, fingindo. Fernando Pessoa já disse tudo sobre o fingidor. Bom, elas nunca saberão com absoluta certeza e quem sou eu prá desfazer a intriga, pelo contrário, quero mais é que duvidem. Não ter nenhuma certeza é melhor do que acreditar no visível.
Não creia no que vê, procure enxergar o invisível, tente entender o subtexto, nem sempre o que é dito é o que se sente, na ficção e na vida real. Não decore o papel, improvise, deixe o sangue ferver, retese os músculos, respire fundo, invente, recrie. Seja protagonista da sua história.
Afinal, não é isso que somos? Atores representando um papel, usando uma máscara social?
Nosso palco é a vida e depende de nós escolher a máscara que se vai usar, a da tragédia ou a da comédia.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

SALVANDO O DOMINGO

Domingo é dia de preguiça, dia de procurar o que fazer e, na maioria das vezes, fazer besteira.
E lá estava eu, bestando às onze da manhã, tomando café no sujinho com o amigo de sempre.
Olhávamos em volta, buscando assunto, tentando preencher o silêncio.
- Olha lá, aquela ali.
- Qual?
- Aquela de óculos escuros.
- Aquela de verde?
- É, coitada.
- Por que, coitada?
- Deve ter passado uma noite de cão, não aguenta nem encarar a manhã.
- Ou chorou a noite toda ou não teve forças prá tirar a maquiagem. Deve estar com olheiras de noite mal dormida.
- Ou, se não tirou a maquiagem, deve estar com cara de urso panda.
- Tô achando que levou um pé na bunda.
- Pode ser, mas que viveu intensamente a noite passada, lá isso viveu.
- É. Melhor um pé na bunda que nada.
-É.
Silêncio. Sopro o café prá esfriar um pouco. Odeio extremos, muito quente, muito frio, muito ou pouco qualquer coisa.
Meu amigo suspira e pede um croissant com muita manteiga.
- Para de entupir as veias com gordura.
- Se não entupir com gordura, vou entupir com o que?
- Você tá precisando de exercício, melhora o astral.
- Falou a rainha da academia.
- Sério, ajuda.
- Se ajudasse, não estaríamos aqui, matando o que nos mata.
- O tempo.
- É.
Silêncio.
- Reparou naquele cara de terno?
- Às onze da manhã de um domingo?
- Deve ser algum segurança.
- Ou vai a algum evento importante.
- E passa, antes, num sujinho prá tomar café?
- Pode ser.
- Não pode, não. Definitivamente, trabalha em segurança. Ou vai trabalhar, ou acabou de sair do plantão.
- Talvez. Agora ele vai prá casa, tirar o terno, botar uma bermuda e um chinelão e sentar na frente da televisão até cair no sono.
- Isso se as crianças e a mulher deixarem.
- Por que não deixariam?
- Porque é domingo, dia consagrado à família.
- Dia de descanso.
- Dia de lazer.
- Dia de curar ressaca.
- Dia de merda.
- É.
O tempo passa, lentamente, em silêncio.
- O que você vai fazer, hoje?
- Sei lá. O de sempre. Ler o jornal, almoçar por aí, voltar prá casa, ler um livro.
- Acho que vou pegar um cinema.
- Domingo?
- Não?
- Se você quer chateação, é um bom programa. Fila, sala cheia, pipoca, barulho de papel de bala, celular. Boa escolha.
- É. Acho melhor, não.
- É.
- E praia?
- Socorro!
- É, tem criança espirrando areia em volta, cachorro, churrasquinho, frescobol.
- Uma corrida de obstáculos.
- Uma chateação só.
- Prá que existe domingo?
- Prá gente pensar na vida.
- Ou prá pensar na vida que os outros levam.
- Ou prá inventar uma vida para os outros.
- Ou prá ficar falando besteira.
- Entra domingo, sai domingo, e a vida continua igual.
- Queria me apaixonar.
- Você e a torcida do Flamengo.
- Junto com a do Corintians.
- Pois é. Vai sonhando.
- Eu poderia me apaixonar.
- E eu poderia ganhar o Nobel da imbecilidade.
- Cruzes, você, realmente, se leva a sério.
- Né, não?
- Tem razão, você é um imbecil.
- Obrigado. Concordamos em alguma coisa.
- Acho que vou dar uma caminhada, respirar, suar.
- Excretar a cana da noite passada?
- Nem bebi.
- Nem um pouco?
- Nada.
- Tá explicado.
- O que?
- O desânimo.
- Bebida não me anima.
- Mas anestesia.
- Parece um alcoólatra, falando assim.
- Melhor um alcoólatra conhecido que um alcoólico anônimo.
- Não tem graça nenhuma.
- Eu sei.
- Vamos lá prá casa, eu preparo uma macarronada e vemos uns filmes.
- Tá doida? Teu macarrão é "unidos, venceremos" e teus filmes são umas xaropadas europeias. Tô fora.
- Então, tá. Passa o domingo gemendo, resmungando, praguejando.
- Vou à missa.
- Você é ateu!
- E você é à toa.
- Cretino!
- Rabugenta!
- Cínico!
- Mal amada!
- Ai, Deus, o que seria do domingo sem você na minha vida?
- Um tédio.
- Continua um tédio, mas com você.
- Só por essa declaração, eu vou prá sua casa, mas eu cozinho e, enquanto você vê seus filminhos, eu tiro um cochilo no sofá.
- Vai parecer um casal de meia idade.
- A não ser que você queira algum benefício extra.
- E se eu quiser?
- Vou ser seu objeto de prazer.
- Convencido. Quem disse que você me dá prazer?
- Se não dou, você sabe fingir bem.
- Então, vamos lá, tentar aproveitar esse dia.
- Salvar o domingo.
- Ainda acabo gostando desse dia.
- Prometo dar o melhor de mim.
- É melhor dar mesmo, prá fazer valer a amizade.
- Todo domingo é a mesma coisa.
- Ainda bem que somos amigos com benefícios.
- Salva a secura da semana.
- Seu Zé, fecha a conta.
- Que o domingo tá fechado!

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

SER X TER

Ando sofrendo de um terrível sentimento de exclusão.
Não saberia determinar quando esse mal começou, sei que estou contaminada e não sei o que fazer.
Percebi que, quando estou entre amigos, não consigo me encaixar no grupo, não sou capaz de acompanhar a conversa. Minhas opiniões não são relevantes, sequer entendo sobre o que estão falando.
Pouquissimas pessoas deste círculo prestam atenção em mim, pra falar a verdade, acho que nenhuma.
Pertenço a uma classe decadente, a das pessoas que valorizam ser ao invés de ter.
Não sei ser rasa, superficial, às vezes peso a mão, eu sei. Peso quando aprofundo a discussão sobre, por exemplo, Louboutin ou Manolo. Entendo que os pés que calçam um ou outro, são simplesmente pés que sustentam um corpo imbuído de intelecto, pele, ossos, músculos, um ser que se sustenta sobre dois pés, que evoluiu, que pensa e decide. Entedio os outros porque a discussão é sobre valor de mercado e não sobre valor essencial.
Não sei nada sobre valor agregado, capital de giro, mercado de luxo, sei que a grande questão é o que fazer com as pessoas que não se importam em usar uma roupa qualquer, sem levar em conta sua grife.
Roupa é pra proteger a pele do calor ou do frio e a sociedade da nudez que poderia afrontar.
Aí, inventaram que o poder está em ter marcas caras e visíveis. Pra isso colocaram etiquetas, logos, símbolos que demonstrem o poder econômico.
E é um tal de Chanel pra cá, Dior pra lá, Louis Vuitton, Versace, quanto mais grifado o closet mais importante o proprietário dos penduricalhos. E são, simplesmente coisas, não determinam as pessoas, ao contrário, esvaziam as possibilidades de ser. É aí que fico inconveniente, que me torno inferior.
Não tenho closet, tenho armário, não tenho grife, tenho roupas confortáveis, algumas atuais, que me vestem, não carrego a compulsão de aparecer pelo que uso, sou e é isso que me importa.
Alguns diriam que sou assim porque não posso bancar luxos supérfluos, mas já pude e, nem assim, pagava pela vitrine que podia mostrar. Sempre ouvi que dinheiro não aceita desaforo e acho um desaforo classificar as pessoas pelo número de grifes que carregam no corpo.
Hoje em dia, se você não tem um carro imponente, uma casa montada pelo mais caro decorador, roupas exclusivas e caras, enfim, um exterior de dar inveja, você é um zero à esquerda.
Você se mata de trabalhar (em algumas "profissões", roubar), prá fazer parte dos grupos de destaque, pertencer a "alta roda", ser visível pelo que tem.
Deixe que eu me apresente: não sou rica, não me endivido prá mostrar a sola vermelha do meu sapato, penso (logo, existo), não discrimino nem julgo uma pessoa pelo que veste ou pelo que tem. Gosto de gente que me estimule o raciocínio, que troque conhecimento, sabedoria, cultura, que não tenha o olhar viciado em estereótipos, que procure arrancar do, aparentemente, nada, uma partícula de personalidade, de individualidade (no bom sentido), que se destaque da manada.
Você nada é sem ser. Ter não vai fazer diferença, se você não for. Ser é definitivo, ter é transitório.
Não tenho nada e quando me for, nada é o que vou levar.
Em compensação, quando a velha senhora me pegar a mão, deixarei o que fui, o que disse, o que plantei, o que pensei.
Não posso mudar a maneira de pensar dos "amigos", eles são materialistas e se reconhecem pelo que têm. Não deixo de gostar deles pelo que são, mas, quando nos reunimos, sinto essa terrível sensação de exclusão, por não ter os bens que eles acham que é importante, por ser diferente, ser gauche, como dizia o poeta, por não poder aprofundar um bom debate, por não ser entendida. Acho que eles me vêem como uma pessoa excêntrica, o bichinho de estimação deles, a pobrezinha que só consegue usufruir os prazeres da vida através deles, uma pequena obra de caridade dessa fraternidade.
No fundo, acho uma pena eles não usarem o poder do dinheiro pra melhorar suas perspectivas, comprar livros e instrução, obras de arte, apurar o olhar, enxergar que tudo o que, realmente, pertence à eles é a soma do que cultivam dentro de si, que o ter, é simplesmente o que podem comprar e acumular. Eles poderiam se tornar decoradores de seus interiores.
Sou inferior em posses, sou tremendamente inferior em bens aparentes, mas tenho outras prioridades, tenho alguns bens que acumulei: livros, que me ajudaram a preencher e saciar minha ignorância, filmes que me sensibilizaram e me mostraram outras possibilidades, pessoas que me ensinaram a ser e pensar diferente, pessoas que servem pra somar, nunca pra excluir.
As grifes vão continuar dominando mas jamais poderão superar um ser que é, independente do que aparenta ser, por não poder ter.