quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

HO! HO! HO!

Só um minutinho, vou lá na esquina e já volto!
É o que dá vontade de fazer, em fim de ano.
Juro que tenho ganas, todo bendito ano, de sumir em 1° de dezembro e só voltar depois do carnaval!
Rapaz, é muita pressão!
A fúria assassina de presentes, visitas ao shopping, lembrancinhas de última hora, preparação de ceia, obrigação de estar feliz - e não interessa se você É feliz ou não- receber com sorrisos quem você sabe que vai sair falando mal de tudo - desde o peru que estava mal temperado até o presente que vai ser repassado prá ajudante do lar- trabalhar que nem uma égua puxando carroça, e, ainda por cima, ter que se preparar prá receber em alto estilo: unhas e cabelos bem feitos, roupa impecável, perfume suave e muito guaraná em pó prá segurar o antes e o depois da ceia.
Finda a noite, resta a cozinha em frangalhos, exatamente como seu corpinho, pés doendo por causa daquela sandália ma-ra-vi-lho-sa mas absolutamente imprópria prá quem vai ficar em pé a noite toda.
Ai, que vontade de chorar quando olho prá pia e vejo que a noite vai ser um pouquinho mais longa do que eu queria.
Completada a organização, depois de duas horas limpando e guardando louças, rearrumando a geladeira prá caber toda a sobra, dando uma geral na casa - vício que herdei de minha mãe que dizia: "Casa tem que dormir arrumada, vai que passa mal à noite e tem que chamar um médico? Imagina a vergonha!" - preparo-me prá dormir.
Tomo um longo banho - com direito a sais e espuma, que eu mereço - ligo o ar condicionado, porque Natal nos trópicos só perde prá sauna à vapor e me deito.
Cadê o sono?
A agitação foi tamanha que o sono se perdeu no caminho.
Rolo prá cá, rolo prá lá, pego um livro, ligo a televisão - potente sonífero prá mim - e nada.
Nesse maldito instante, a cabeça começa a funcionar à mil.
_"Xô, pensamento, vou imaginar uma página em branco" e vejo, literalmente, uma ...página em branco, e a infeliz não vai embora!
Quando, enfim, caio no sono, toca o despertador. Desorientada desligo o celular, segundos depois a campainha da porta toca e eu soco o despertador. A campainha soa, novamente, aí me dou conta de que são algumas pessoas que voltaram para o "enterro dos ossos".
Pulo da cama, visto qualquer coisa que está à mão, abro a porta e dou de cara com aqueles que acabaram de sair. Foram prá casa e encontraram tudo limpo e em ordem, deitaram, dormiram, fofocaram sobre a noite passada e voltaram prá recomeçar.
A zumbi, apatetada pela noite mal dormida, vai recomeçar a função que mal terminou.
Sem falar nas saias justas que, infalivelmente, acontecem.
Família é um poço de histórias mal resolvidas.
Tem a mulher do irmão que se porta como uma rainha e tem que ter tudo à mão, não se levanta nem prá esfriar a cadeira, as crianças que infernizam com seus gritos e choros e não se pode reclamar porque os pais se ofendem, a tia solteirona e seus achaques prá chamar atenção, o primo que fala como se estivesse brigando e tem sempre razão, diga a asneira que disser, tem o tio super, hiper animado que, depois de algumas doses, resvala na grosseria e constrange a mulher, a prima gostosa que conta prá quem queira ouvir - e também prá quem não queira - suas conquistas e os destroços humanos que deixa pelo caminho e os irmãos que cobram qualquer coisa e sempre, aconteça o que acontecer, relembram a infância e as "artes" que EU fazia. Eles eram perfeitos, eu era a atrapalhada que só fazia bobagem. Ai, Deus, dai-me...
Fico observando e tendo a impressão que, não importa o ano, é sempre a mesma coisa: a mesma conversa, os mesmos conflitos, as mesmas pessoas, como se, naquela data, descongelassem e repetissem a mesma situação.
A tarde passava em câmera lenta, até que, repentinamente, aconteceu algo novo e desconcertante.
Uma tia, a constrangida, levantou-se, bateu com a colher na taça e pediu a atenção de todos.
_"Silêncio, por favor. Quero aproveitar esse momento em que a família está quase toda presente para fazer um comunicado. Sei que alguns vão se surpreender, outros meio que esperavam mas não acreditavam que, um dia, fosse acontecer. Depois de 33 anos engolindo um sapo gigante, resolvi - e estou dizendo, em primeira mão, ao interessado - dar uma banana pro panaca do meu marido".
Silêncio sepulcral!
O tio, que até então era o idiota da corte, arregalou os olhos e perdeu a fala.
Começou o zum zum zum, pessoas falavam, gesticulavam, perguntavam, completamente atônitos por aquele banho de água fria.
A tia, impassível, bateu novamente no copo até a sala silenciar.
_" Vocês sempre souberam que eu fiz uma péssima escolha. Suportei esse projeto de anta, mais por não querer dar o braço à torcer, confesso. Tá certo, 33 anos foi um pouco demais. Mas tivemos filhos e a vida foi passando. Esperei que ele percebesse minha insatisfação e fizesse alguma coisa prá mudar. Mas tudo que eu conseguia era mais piadinhas e mais constrangimento. Até que, ontem, bêbado e sem noção, como sempre, ele teve o descaramento de me presentear com a notícia que faltava prá entornar o chopp".
O tio perdeu o sangue, ficou branco como a página que eu imaginei na minha insônia, foi escorregando pela parede com a mão no peito e caiu sentado no chão.
Todos correram prá acudir. A tia, impávida, não se mexeu.
Meu irmão dizia que ele estava infartando, minha irmã dizia que era aneurisma, as crianças, bem... as crianças sumiram, retiradas pela cunhada-rainha.
_"Liga prá algum médico".
_"Que médico, nada, vamos levar direto pro hospital."
_"Tosse, tio, eu li que ajuda!"
_"Desabotoa a calça dele."
_"Abana, ele está sem ar."
_"Isso era hora de acertar contas com o coitado?"
_ "Não podia esperar até chegar em casa?"
Tudo dito ao mesmo tempo.
Arrastaram o homem para o hospital mais próximo, onde ficou em observação.
A casa esvaziou, sobramos eu e minha tia.
Ficamos ali, procurando o que fazer, esperando alguma notícia.
Enquanto ela bebericava, calmamente, eu e o meu TOC limpávamos a casa. Em momentos de aflição eu desando a arrumar, lavar, esfregar, organizar, essas coisas sãs.
Depois de uma eternidade, o telefone toca e nos informam que ele está bem, não havia nada no coração, provavelmente tinha sido uma manifestação de pânico, a tal da síndrome.
Nos olhamos por algum tempo, até que tomei coragem e perguntei qual era, afinal, a tal notícia.
Minha tia deu um sorriso enigmático e disse:
_"Mais uma vez, ele conseguiu arrebatar a platéia e me deixou sem audiência."
_"Como assim, tia? Ele passou mal!"
_"Previsível, vindo  dele."
_"Tá bom, não vou me meter nessa briga."
_"E qual é a graça de contar, logo à você, a bomba que ele me atirou? Você não é uma fonte confiável."
_"Eu não sou...por que?"
_"Minha querida, quando contamos um segredo à alguém e pedimos reserva, quer dizer que queremos que todos saibam mas não pela nossa boca. Você não conta seus segredos nem para o travesseiro, como vai espalhar o meu?"
_"Mas não era segredo, tanto que você disse que ia fazer um "comunicado oficial."
_"Exato. Só que, se eu contar só a você, vai morrer aí."
_"E se ele, realmente, tivesse tido um piripaque e morresse?"
_"Seria a glória! Teria uma platéia muito maior no enterro. Faria um discurso de levantar defunto. Ele iria se contorcer por toda a eternidade. Taí, seria o momento ideal."
_"Nossa, tia, você tem uma mágoa sem tamanho!"
_"Minha querida, ele não perde por esperar. Você acha que eu vou perder a oportunidade de dar o troco?"
_"Não entendi", respondi.
_"Vingança é um prato que se come frio. Nem que eu tenha que esperar mais um ano. No próximo Natal, quando estivermos novamente reunidos na sua casa, vocês saberão. Quem aguentou 33 anos, aguenta 34. Da vergonha ele não escapa!".
 E mais não disse.
Pegou a bolsa e foi embora.
A sala me pareceu maior do que era, realmente. O ar, pesado de silêncio.
Deus, ai, Deus, todo poderoso, quem não aguenta outro Natal sou eu.
Ainda mais, depois desta ameaça de destruição.
Zonza e abestalhada, começo a falar em voz alta.
"Pai nosso, estais aí no céu?
Perdoai essas ofensas e perdoai, também, os que ofendem ou são ofendidos.
Não me deixeis cair na tentação da curiosidade e livrai-me, por favor, do Natal.
Amém!"