terça-feira, 29 de maio de 2012

ÚLTIMA VIAGEM

À quem interessar possa.

Com essa pretensiosa introdução, despeço-me desse veículo.
É a última viagem que faço nesse trem-bala chamado blog.
Adorei passear por aqui, mas como tudo na vida é transitório, também meu blog padece desse mal.
Foi uma viagem inesquecível, daquelas que a gente lembra com carinho.

Escrevi o que via, percebia, sentia. Fiz um blog sem mentiras, do meu jeito. Mostrei meu avesso. Deixei fluir, em linguagem direta, sem rebuscados, histórias da vida real.
Mas como a vida real não dá IBOPE, e eu, infelizmente, não tenho o dom de iludir, entendi que o que escrevo não se encaixa no mundo virtual.

Vou continuar escrevendo, para mim e para quem gosta de saber o que penso, mas privadamente.
Talvez volte no tempo e mande cartas para velhos amigos, aqueles que sei o endereço de moradia.
Ainda gosto desse ritual.

Quem passou sem se deter, não se identificou, mas tentou. Obrigada.
Quem voltou, de vez em quando, veio buscar um pouco de realidade. Espero que tenha encontrado.
Quem frequentou com mais assiduidade, e quero deixar claro, pouquíssimos, conto em dois dedos da mão esquerda, que é a do coração, sabia quem eu era. E vai continuar sabendo.
Não tive seguidores, tive amigos e era para eles que escrevia. Todos próximos, conhecidos, mais que amados, reverenciados.

Tentei dar o melhor que podia, espero ter conseguido.

Convoquei todas as minhas personagens ao último vagão desse trem que agora parte, por uma razão: em vez de descermos na estação mais próxima e nos perdermos, ficaremos, juntas, em um desvio desativado da ferrovia. Há a possibilidade de sermos resgatadas em um livro.
Mas nosso vagão será desengatado do trem-bala.

O mundo virtual será a sociedade do futuro, onde não haverá necessidade de contato pessoal, onde tudo se resolverá pragmaticamente, sem envolvimento, sem emoção.

Viver é mais complicado.
Viver é perigoso, dizia, Guimarães Rosa!
Viver é etcetera, ele, de novo!
E é esse etcetera que me interessa.

As relações interpessoais serão substituídas por telas, onde as pessoas se apresentarão e interagirão por webcam. Ninguém precisará sair de casa para se relacionar com alguém.

Como será beijar virtualmente? Beijo tem encaixe, movimento, gosto. Mas, como tudo é possível, talvez inventem uma ferramenta que reproduzirá essas sensações.

Não sei amar por webcam, nem fazer amigos, assim.
Não me considero capaz de escolher, entre milhares de fotos, aquele que vou ter como amigo.
Não evolui à ponto de me privar do contato pessoal, do toque, do olhar.
Sinto falta do junto, chorar junto, sorrir junto, brincar junto, só assim faz sentido.
Então, como me considero inapropriada para frequentar esse ambiente... os incomodados que se retirem!

Agradeço muitíssimo à quem se interessou pelo que eu tinha a dizer.
Quem sabe esses são, também, órfãos da vida real. Ou nostálgicos. Ou arqueólogos de emoções, nem tão antigas, assim.

Mas chegou a hora de desengatar esse último vagão, aquele que sobrecarregava, inutilmente, essa moderna locomotiva.
Essa foi a última viagem.
É hora do adeus.










segunda-feira, 28 de maio de 2012

CURTO CIRCUITO

Que nome dar ao que sinto?
Que coisa que desaquieta deve de ter nome.
Como chamar esse tic tac na cabeça,
bomba armada com precisão de tempo?
Meu coração taquicardiado, precisa de explicação.
Se desse nome ao que sinto, daria definição.
Meu sangue se aligeira na veia, corre sem destino,
depressa demais pro meu entendimento.
Meu corpo tenso, 
procura essa palavra que vai trazer a descontração.
Mas que palavra é essa que me falta?
Quais letras tem precisão de dar as mãos e formar a resposta?
No vasto leque de emoções, a todas já dei nome.
Nenhuma é a que sinto.
Olho prá frente e enxergo o dentro, isso tem que ter nome.
Sigo adiante, em linha reta, mas meu eu ziguezagueia prá trás,
vivo voltando ao antes.
Apuro os ouvidos, meu escutar está fraco, só escuta uma voz.
Essa, sim, tem nome.
Mas não é desse nome que falo,
esse eu já sei quem é.
Sei que quem provocou esse sem nome,
foi esse que nome tem.
Tudo foge ao meu controlar,
preciso achar esse nome,
esse oculto, esse que vai clarear.
Esse nome escapa do dicionário,
que já li que nem bula de remédio.
Procurei nas entrelinhas, nos efeitos colaterais,
esse nome se esconde só prá me agoniar.
Minha pele me rejeita,
não quer o meu tocar.
Minha boca não se abre ao falar,
falo com o pensamento, ninguém consegue escutar.
E tanto pensamento, não consigo dar vazão,
eles embaralham as idéias,
vão prá lá e se arrependem,
voltam prá cá e não se entendem.
Andam brigando por espaço,
amontoadas em meu pensar.
Meu entendimento está sem pernas, não avança,
desaprendeu a lógica.
Que a lógica só vai voltar,
quando o nome que busco, descobrir minha cabeça.
Acho que esse nome se perdeu dentro de alguma gaveta
ou entre as dobras da coberta em que me escondo de mim.
Se eu não achar esse nome, se ele se perder do meu sentir,
se o nome que sei, não der nome ao que eu não sei,
então sou caso perdido.
Vou ter que viver com o achamento
que essa coisa sem nome só acontece em mim,
porisso nem nome tem.
Então, vou batizar o sem nome com o teu.
Aí, o sentimento vai ter definhação.




ENQUANTO VOCÊ DORME

Enquanto você dorme, eu ardo. Ao seu lado, em vigília, ardo.

O sono faz com que você abandone a alma. Eu, Mefistófelis à espreita, quero possui-la.

Você, desprotegido, inconsciente, passeia em sonhos, sorri. Prá quem? me pergunto.

Enquanto você dorme, se afasta. Me deixa seu corpo indefeso e eu quero seus pensamentos.

Enquanto você descansa, me esquece. Eu não durmo para não te perder.

Enquanto você dorme, eu amo. Amo a respiração pesada, o corpo vulnerável, os movimentos espontâneos. Amo você, enquanto você dorme.

Queria poder entrar em seus sonhos, ser a protagonista de todos eles. Queria viver dentro deles, dentro de você.

Queria que fossemos um, assim, eu poderia dormir.
Sonharíamos o mesmo sonho, juntos, abandonaríamos a alma, que seria uma só.

Mas, enquanto você dorme, eu velo seu sono, esperando seu despertar.

E quando você despertar, eu poderei, finalmente, dormir.
Porque nos meus sonhos, sei que vou te encontrar.







CLANDESTINO

A varanda era grande, com sofás confortáveis, mesas espalhadas, plantas e flores bem distribuídas.
Tinha balanços, desses bem antigos, que remetem à vida de fazenda, à simplicidade da existência.
Tinha velas que ela acendia à noite, luzes trêmulas acompanhando o pisca-pisca dos vagalumes.
Tinha a paisagem exuberante, vales, matas, lagos, montanhas.
Tinha a privacidade da distância de quilômetros, até o vizinho mais próximo.
Tinha a quietude quebrada somente por aves, micos, cães e gatos.
Tinha um céu azul , imaculado, durante o dia e uma tenda negra com luzes minúsculas, durante a noite.
Tinha a companhia de livros escolhidos, para espantar a solidão.
E de música erudita, para não quebrar a harmonia.
Tinha alimento e coberta que aqueciam o estômago e o corpo.
As noites eram geladas, naquela varanda, mas ela não se importava, gostava de frio.
Se enroscava em uma grossa manta de lã, encolhia-se no canto do sofá e deixava-se abraçar pela paz. Sentia-se parte da natureza.
Quando seus olhos cansavam de tanta beleza, fechava-os, assim a retinha na memória.
Apagando a imagem, apreende-se o significado.
E, como a lente de uma máquina, abria e fechava os olhos, captava a foto do instante fugaz.
Passava os dias caminhando com seu cão, única companhia e ouvinte, seus segredos bem guardados por um animal. Trocava afagos por lambidas de gratidão.
Quando cansava, sentava em uma pedra, tirava as botas e pisava na vegetação, buscando energia naquele solo úmido e frio.
O tempo escorria por si, passava sem chance de retornar. Tempo é a única coisa na vida que não volta.
Deitava sobre a pedra e olhava aquele céu, a luminosidade cegava.
Seu cãozinho aconchegava-se, não sei se aquecendo à si mesmo ou à ela.
Nos dias mais quentes, banhava-se nua na cachoeira que formava uma bacia. Ali, podia nadar.
Seu corpo se mostrava vivo, arrepiava-se com o choque térmico, um misto de desconforto e prazer.
Descargas elétricas a faziam tremer, mergulhava e, de olhos abertos, via o nada em volta.
Emergia, buscava o ar, expandia os pulmões, respirava a pureza.
Então, se tocava, se acariciava, fantasiava que mãos conhecidas e não as suas, desbravavam seu corpo, conquistavam seu mais íntimo recanto, implodiam suas defesas, explodiam suas represas e faziam jorrar sua fonte de prazer.

Em um desses dias, voltou à casa com o corpo acalmado, mas uma inquietude interior não a deixava sossegar.
À noite, sozinha naquela imensidão, lembranças invadiram seu refúgio, fantasmas assombraram, perguntas assolaram e a falta pesou, soterrou o coração em fuga. Não havia mais onde se esconder.
Passara todo esse tempo, tentando esquecer de si mesma, dele, da dor da separação.
Tentara se bastar, fugindo da tentação de voltar.
Acreditara que a distância se encarregaria de suavizar a perda.
Toda essa beleza e paz em volta e nunca se sentira tão infeliz.
Adormeceu sob um luar deslumbrante, inapropriado para o momento.
No dia seguinte, enquanto tentava livrar-se da ressaca emocional, sentiu a inutilidade de se esconder, de embriagar-se.
Dois telefonemas bastaram prá que o coração disparasse desgovernado. Telefonemas inesperados, descuidados, provocaram à volta ao lugar inicial.
Atordoada, despreparada, surpreendida, sentou no balanço e, como uma criança, se acalentou, abraçando o que restou dele: um casaco que viajou clandestino em seu carro. Esquecido, como ela.











PAS DE DEUX

Me despia com o olhar.
Encostava os lábios em meu pescoço, eu tombava a cabeça.
Soltava meus cabelos e sussurava em meu ouvido: te amo.
Meu corpo respondia: sou tua.
Abraçava-o, encostava meu rosto em seus ombros, meu coração batia em seu peito.
Tirávamos devagar as roupas, um do outro, enquanto acariciávamos cada centímetro que era desnudado.
Pegava-me no colo, eu envolvia sua cintura com minhas pernas.
Rodopiávamos, assim abraçados e ríamos. E nos beijávamos.
De olhos abertos, olhando o dentro, procurando os segredos escondidos no fundo dos olhos.
E íamos mais fundo no dentro do outro, até sermos um dentro do outro.
Pelos olhos se começa a paixão, depois se espalha pelo corpo todo.
Teu mapa, percorria com minha boca, tua língua percorria o meu.
Tuas mãos em concha sobre meus seios, minhas mãos prendiam teus braços.
Teus dedos acariciavam minha pele, provocavam arrepios e inundações.
Enquanto me beijavas os seios, te beijava a cabeça.
Enquanto te beijava o ventre, me beijavas as costas.
Nossas narinas dilatavam, nossa respiração acelerava.
Nossos corpos trocavam calor, nossas línguas trocavam desejos.
Tinhamos a intimidade dos despudorados, tinhamos a delicadeza dos tímidos.
Tinhamos a generosidade do afeto, tinhamos a fúria da urgência.
Provávamos nossos gostos, sentíamos nossos cheiros, trincávamos os dentes e ríamos. Ríamos muito, juntos.
Meu coração batia por todo meu corpo, teu coração batia dentro de mim, éramos um só corpo, um só coração, uma só vida e um só instante de eternidade.
Sentia teu prazer, me davas o meu. Nos beijávamos, felizes, esgotados.
E o mundo parava, testemunhando a completude de nosso amor.

Abria os olhos prá te ver, hoje, fecho-os prá te lembrar.










PAS DE UN

Um, dois... vinte e oito... setenta e nove...mil e seis...mil trezentos e quarenta e três...dois mil novecentos e noventa e nove, três mil carneirinhos contados em, aproximadamente, vinte e sete minutos. E nada do maldito sono aparecer.
Esses carneirinhos atrapalharam, não conseguia parar de contar!
Via-os pulando a cerquinha, um a um, em fileira.
O três mil e um já estava à postos quando abri os olhos e disse: chega, assim já é demais!
O pobre deve ter ficado congelado no salto abortado.
Me senti culpada por não ter dado à ele a chance de se exibir.
Acho que a falta de sono está me deixando maluca, me sentir culpada por um carneiro imaginado!
Olho o relógio pela milionésima vez e só passaram dois minutos desde a última olhada.
Levanto da cama, pego um livro chatérrimo e uma cerveja gelada.
Já que não bebo, o efeito seria rápido: livro porcaria + cerveja= sono instantâneo.
Cheguei à página oitenta, bebi duas cervejas e não aconteceu absolutamente nada.
Resolvo dançar, cansar o corpo. Coloco "O lago dos cisnes", calço minhas sapatilhas de ponta, já que fui bailarina. Minha memória corporal me traz de volta, pliés, jetés, fouetés, pas de burres, pas de chats, piruetas, arabesques. Meus braços e pernas adquirem vida própria. E danço "O Quebra Nozes", "Copélia", coreografias memorizadas. Meu corpo excitado responde com adrenalina e danço como se não houvesse amanhã. Suo, alongo, tiro as sapatilhas e massageio meus pés. Poder dançar, depois de tantos anos, o corpo obedecer, sem muita dificuldade, me alegra. E alegria, vocês sabem, tira o sono. Má idéia testar capacidade física nessa hora.
Tomo um banho quente, pelando, dizem que ajuda...aos outros, seres normais. Eu, como sou anormal, só consegui ficar cheirosa. Menos mal. Gosto de mim cheirosa. E eu estava insuportávelmente cheirosa.
Não aguentei ficar em casa, tinha que sair.
Me preparei como se fosse a uma festa. Me maquiei, prendi os cabelos, botei meu vestido vermelho, colado ao corpo, saltos altos, perfume suave, entrei no carro, música em alto volume, janelas abertas, senti o frescor da noite.
Respirei profundamente, exalei suavemente o ar quente que saia de minha boca. Beijei a noite.
Rodei um bom tempo, na solidão da alta madrugada.
Tão bom ter a cidade só prá mim. Ruas vazias, nenhum trânsito.
O dia começava a amanhecer, a cidade estava prestes a despertar, hora de voltar.
Entro em casa com as sandálias balançando em dois dedos, afago meu cachorro, tomo café, tiro a maquiagem, o vestido e nua, me deito. As cobertas me envolvem, me aquecem, me acariciam.
Engano o sono, atrasando o relógio. Voltei à uma hora da manhã, roubei cinco horas do tempo.
Não perdi o sono, ganhei uma noite de puro prazer, solitário, é verdade, mas não se pode ter tudo.



domingo, 27 de maio de 2012

À MINHA IRMÃ

Era linda.
Sempre chamou atenção pela beleza. Beleza clássica, incomum.
Mas era triste, de uma tristeza que doía em quem a conhecia.
Nunca soube o que fazer da vida, não aprendeu a ser.
Era grande, alta e larga, e tão pequena, desprotegida.
Tentava não ocupar espaço, tentava ser invisível.
Não queria contaminar os outros com sua dor.
Dor existencial, dor de tanta solidão.
Amava tudo, amava todos, não escolhia, amava.
Se foi amada, nunca soube, nunca ouviu.
Era generosa, doava-se, talvez na intenção de sair de si, de viver no outro.
Ria e se escondia no riso, forçava felicidade.
Gostava de sair, esperando esbarrar em possibilidades, pequenas que fossem.
Fantasiava com essa vida emprestada.
-Quando eu for..., quando eu tiver..., quando eu puder..., e outros quandos que nunca vieram.
Nunca, foi seu quando.
Atava-se às filhas prá não ficar à deriva.
Dava todo seu amor estocado à elas, à neta, aos amigos, à família.
Perdia sua identidade, mesclava-se, sumia.
Tinha essa beleza triste, sofrida, machucada por tanto nada que teve.
Seus olhos mostravam a descrença, poucas vezes brilharam.
Perdeu tempo, contando os dias.
Perdeu dias, contando as horas de inquietação.
Perdeu horas tentando entender onde estava seu erro.
E seu erro era não acreditar que merecia ser feliz.
Era, essencialmente boa, uma bondade que chegava a incomodar.
Acreditava em tudo e a todos perdoava, herança paterna.
Carregava-se como um fardo, pesava-lhe existir.
Se despediu da vida assim que nasceu, nenhum mistério nisso, nos dirigimos à morte desde que saímos do ventre materno.
Mas tentamos sobreviver com planos, metas, sonhos. Ela, não.
Fingia com seus "quando" que estava presente à vida.
Tinha uma melancolia atávica, entranhada em seu DNA.
E de dor em dor, dia após dia, esperou.
Esperou o amor, o abraço, o aconchego, esperou o sentido de sua vida.
E a vida passou por ela sem notar sua presença.



ALERTA

Insônia,
inapetência,
taquicardia,
ansiedade,
pensamento obsessivo,
sudorese,
estômago habitado por borboletas,
tensão,
stress.

Definitivamente, amar faz mal à saúde.

COMIGO ME DESAVIM

Andei brigada comigo. Me desaforando. Me chamando prá briga.
Estava de mal comigo. Me dei os dedos mindinhos, como quando era criança e trocava de mal com o amigo.
Não me olhava no espelho, não queria nem ver a minha cara.
Me chateei comigo, me disse coisas bem rudes e nem me desculpei.
Me chamei de burra, eu que sou até inteligente.
Me destratei, me xinguei, me aborreci prá valer, comigo.
Esqueci que sou minha amiga e me falei verdades cruas.
Me disse: quem é você prá acreditar no amor? Você já passou da idade!
Me respondi: mas amor tem idade prá acontecer?
E me falei, sem piedade: isso é coisa de gente jovem! Repara nas suas rugas.
Não bastava me repreender, tinha que me derrubar.
Briguei comigo porque me aventurei no amor, acreditei ser possível que alguém me amasse.
- Pera lá, me disse. Com tanta mulher bonita, jovem, esperando pelo amor, você realmente acredita que vai acontecer com você?
Tímidamente, me respondi: por que, não? O amor não escolhe, surpreende.
Me olhei com cenho franzido, e de minha boca sairam palavras que me atingiram o estômago como um soco.
- Você se ilude. Coisa de mulher de meia idade. Quer se sentir viva prá enganar a morte!
Confesso, baqueei.
Era isso que tínhamos? Pretexto prá tentar negociar com a morte? Últimos estertores? Último desejo? Extrema unção?
Tentei reagir, me dizendo que: não, não foi isso que eu tive, não pode ter sido só isso!
Me ataquei, de novo: deixe de ser besta, você foi usada e descartada. Rei morto, rei posto! Alguma dúvida? Aposto que, nesse momento, outra já tomou o seu lugar. Existem milhões como você, disponíveis, loucas prá serem enganadas, prá acreditarem que são especiais. Burra!
Me esfreguei na cara a impossibilidade de ser recortada e destacada na vida de alguém.
Briguei comigo, já nem sabia quem era a que atacava ou a que defendia. Era eu, comigo, misturando papéis. Saí no tapa. Desferi golpes baixos, chutei minhas canelas, me puxei pelos cabelos.
Me cobri de hematomas, sangrei meus lábios, feri meus brios e arrebentei meu amor próprio.
Fui ré e juíza, vítima e algoz, me embaralhei comigo.
Passei uma semana sem me falar, por fim achei que aquela desavença tinha que acabar.
Me procurei prá conversar comigo.
De início me fiz de ofendida, relutei em aceitar as pazes.
Tinha me dito coisa cruéis, me descuidei da delicadeza que podia ter tido, me tratei como uma qualquer, e não sou, sou eu, tinha que ter me tratado com mais cuidado. Me bati e apanhei de mim, perdi a elegância, perdi as estribeiras, perdi o juízo.
Fui ao espelho, me olhei dentro dos olhos, fixamente, me encarei sem máscara, sem defesa, éramos eu e eu mesma, nos reencontrando.
Me disse: ele dizia que meus olhos era o que ele mais gostava em mim.
Me respondi: porque você o enxergava, de verdade.
Falei-me: não me maltrate, me ajude. Ainda dói.
Toquei meu rosto refletido no espelho, me acariciei e chorei comigo.
Você tinha razão, me disse. Eu quis sonhar, voar alto, esquecer de mim, me entregar.
Me abracei e me perdoei por ter sido, por algum tempo, a mentira que criei prá mim.
Ainda estou estremecida comigo, juntando os pedaços que arranquei de mim.
Mas vou sair das cordas, da lona, do ringue.
E quando estiver inteira, vou viajar comigo.
Me prometi não me trair nunca mais, me comprometi a recolher e guardar as asas que achei que me pertenciam.
Hoje eu sei que asas são prá pássaros, gente como eu, que não pode voar, tem que cuidar do chão onde pisa e evitar escorregões.
Na minha idade, posso quebrar o fêmur!

sábado, 26 de maio de 2012

PEDRA SOBRE PEDRA


"No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho..."
Carlos Drumond de Andrade.

E, apesar disso, temos que prosseguir.
Tropeçando, pulando, pisando, desviando, retirando, ignorando, valorizando, cada um escolhe como lidar com as dificuldades que surgem.
Eu, particularmente, paro e lido com ela.
Em alguns casos, é pura perda de tempo, em outros é parada obrigatória.
Há casos em que as pedras são colocadas como armadilhas, um teste de resistência.
Quando a pedra é muito grande, pode fazer estragos consideráveis.
Mas como fingir que ela não está ali? Não consigo, tenho que me deter diante dela.
Pedras grandes demandam mais tempo, a remoção é mais demorada.
Mas, como água, vou de encontro à ela, suavemente, até tirar-lhe as arestas.
Envolvo-a em um abraço, até penetrar nela, criando fragilidade, porosidade.
Enfrento de dentro prá fora, mergulho na escuridão, buscando a fresta de luz que me guiará prá sair do outro lado.
Só assim, consigo remover a pedra no meu caminho.
Não digo que é fácil, digo que é necessário.
Não aceito que pedras bloqueiem minha estrada, mas não ignoro.
Vou catando pedras como quem cata feijão.
Cozinhando as dificuldades, me alimentando de soluções.
Assim é a vida, entre pedras, até encontrar um diamante.
Uns acham, outros perdem, a maioria não consegue distinguir o que é um e o que é outro.
Não sou gemóloga, não tenho facilidade de reconhecer um diamante, mas não descarto as pedras, recolho-as, guardo-as, se não tiverem valor, coleciono-as.
Assim como debulho o feijão, garimpo pedras, não importa o tamanho, sempre terão serventia.
Ao menos, me provarão que não me acovardei diante do mais forte.
E me lembrarei sempre que, antes de Carlos Drumond, Fernando Pessoa dizia:
"Pedras no caminho? Guardo todas. Um dia, vou fazer um castelo..."

FACES


Essa sou eu, solar.
Por mais que a noite queira se impor,
meu sol volta a brilhar.

Essa sou eu, fruta madura,
macia por dentro, protegida
por casca dura.

Essa sou eu, primavera,
onde flores renascem
sem longa espera.

Essa sou eu, esperança,
cuidando de mim,
escolhendo a lembrança.

Essa sou eu, viajante,
não importa o caminho,
sigo adiante.

Essa sou eu, combatente
de lutas inúteis que
me tornam resistente.

Essa sou eu, transparente,
cristal por mim lapidado,
e porisso, diferente.

Essa sou eu, minha seta,
meu arco, meu alvo,
minha própria meta.

Essa sou eu, a que acredita
que a vida é mais do que
a que me foi dita.

Essa sou eu, curandeira,
que lambe as próprias feridas,
e se faz, de novo, inteira.

Essa sou eu, feiticeira,
criando poções, magias,
fazendo de mim o que queira.

Essa sou eu, destemida,
sem passado, sem futuro,
sendo o presente da vida.



quinta-feira, 17 de maio de 2012

DE BABEL E DE MARFIM

Caminhava olhando para os pés, queixo colado ao peito, como se nada mais pudesse ver de novo.
Não olhava para os lados, o periférico sumira, envolto em certezas arraigadas.
Todo entorno, já sabido, igual.
Sonhos, todos já sonhados e não realizados. Vida, contemplada pelas janelas dos olhos.
Nada restava, igual ou diferente, além do conhecido.
Caminhava distraída, envolvida em sua solidão, já amiga.
Tinha a si mesma, como companheira e cúmplice, no desperdício da existência.
Todas as paisagens apagadas, todos os sentimentos domados, todas as vontades e esperanças adormecidas, todo o corpo anestesiado e toda a tristeza que carregava, empurravam aquela mulher frágil para o cotidiano, mecânico e previsível.
Caminhava sabendo o futuro, pitonisa de sua sorte, prevendo guerras interiores, embates fratricidas, recriações de si mesma e demolições de cada torre erguida. As de Babel e as de Marfim.
Á cada passo, incorporava uma falta, de si, de algo, de alguém.
O caminho parecia, à cada dia, mais longo, mais difícil, mais íngreme. Cadafalso.
Nada esperava, nada mais desejava, senão o fim daquele caminho tortuoso.
Nada esperando, aconteceu o inesperado.
Olhando seus próprios pés, vislumbrou outro vulto, uma sombra que caminhava ao seu lado.
Ouviu ruídos de outra respiração, sentiu o calor de outro corpo.
Apressou o ritmo de suas passadas, acreditando estar imaginando para si, uma companhia.
Passos apressados a acompanharam e se aproximaram.
Tentou resistir àquela visão, apertando os olhos, cravando as unhas na palma da mão.
Assustada, ergueu a cabeça, abriu os olhos, fosse o que fosse, seria passageiro.
E lá estava ele, você, olhando sorridente, ofegante, estendendo a mão, convidando para dar um passeio em outra vida.
Com medo de que fosse uma trapaça de seu desejo inconfesso, rejeitou a oferta, buscando, na negação, seu refúgio.
Ele, você, postou-se á frente do caminho, cortou qualquer desvio, impôs sua presença.
Mostrou que o caminho que ele, você, escolhera era mais largo, com novas paisagens, novas cores e perfumes. Mostrou que a vida podia ser diferente, acompanhada.
Tomou-lhe as mãos de conforto, encheu-as de afeto, levou-a prá dançar, levitar, sentir.
Deixaram para trás todas as correntes que aprisionavam, todos os muros que escondiam e todos os carcereiros que ela criara.
Ele, você, deu alma ao corpo frágil, envolveu com suas asas aquela mulher que não sabia voar.
Ele, que era passageiro, não passou. Você, ficou.





quinta-feira, 3 de maio de 2012

CAMPEONATO

Vai começar a partida.
Início de jogo é sempre de provocações, escondendo o respeito e o medo.
Tentamos desestabilizar a segurança do adversário, usamos as armas da retórica.
Ao irmos para o meio do campo para começar a partida, nos olhamos em desafio, lados opostos, imaginando o que vai acontecer e, claro, querendo ganhar o jogo.
E começa o clássico, EU X VOCÊ.
Vou rolando a bola, você marcando em cima.
Dou um passe prá mim mesma, mato no peito e avanço com a pelota controlada.
Você me rouba a bola e dispara em sentido contrário.
Corro atrás, tento retomar a redonda, tento uma, você escapa, tento duas, você consegue retomar, tento três e faço falta.
Você ri e cobra, mandando a bola prá você, já centroavante.
Disparo prá posição de zagueiro, me coloco e você chuta.
Pontaria errada. Ansiedade demais faz errar o chute e é tiro de meta.
Goleira que sou, me preparo prá lançar a bola para o campo adversário. Chuto e corro prá chegar à ela, recebo e rolo, com o peito do pé, olhando prá trás prá medir à que distância você está.
Deixo que você se aproxime e te driblo, e dou chapéu e passo-a entre suas pernas, levanto a bola com um bico e faço com que ela caia, maciamente nos meus pés atacantes, chuto com precisão mas você faz uma extraordinária defesa.
Se abraça com ela no gramado, protegendo-a de mim.
Espera que eu me afaste um pouco e lança-a com as mãos prá si mesmo, lateral esquerdo, sua posição inconteste, seu domínio.
Me atrai prá brincar de gato e rato, ri frontalmente de meu esforço prá roubar a bola, ladra que sou.
E passa por mim como um foguete, me fazendo comer grama e escorregar.
Vai em velocidade, sem que eu, meio de campo ou zagueira, consiga te reter.
E me vejo goleira, frente à frente, com você, que dá uma paradinha antes de chutar à gol.
Espero ofegante, com os olhos esbugalhados e fixos o potente chute, quando soa um apito e te coloca em impedimento..
Você xinga, esbraveja, reclama, eu rio, alivio, respiro.
Impedimento benvindo.
Cobrado o impedimento, a bola é atraída por seus pés que a controla, pisa nela e escolhe a jogada por fazer.
Lança um olhar e percebe as traves desprotegidas, chamando por um gol certeiro e chuta, em curva, sem dificuldade prá acertar as redes.
E é gooooooooooooooooooooooooooollll!
Golaço! De craque, que você é.
Atinge de supetão, com precisão, jogada ensaiada e previsível.
Nesse momento, me convenço que sou time de várzea, me esforço, treino, mas não sou nenhum craque.
Tenho que respeitar medalhão, o que conhece o jogo, o que dedicou sua vida a jogar e que quer ganhar.
Aprendi a perder no jogo, sem desculpas.
Sou perna de pau, vivo contundida, perco nos dribles e não ganho nem um ponto. Unzinho, que seja.
Mas quando tiro as chuteiras e coloco o salto agulha, ninguém ganha de mim. Sou rainha.
E, apesar de jogar mal demais, jamais cavei penalti, nunca fiz catimba e sempre cumprimentei os adversários pela vitória.
Minhas partidas sempre terminam com o respeito que o outro time merece.
Tiro o uniforme suado e sujo da batalha que perdi, tomo um bom e revigorante banho, e me preparo para o próximo jogo.
Possivelmente, perderei mais uma e mais outra e mais centenas de vezes.
Mas sou imbatível no fair play.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

O OUTRO, EM MIM

Hoje, acordei com saudade.
Saudade do que?
Não sei se de alguma coisa.
Saudade de alguém, talvez.
Só sei que que acordei com saudade.
Mas não é um sentimento opressivo, triste, é mais uma sensação de presença.
Saudade de um momento marcante, de uma pessoa importante.
Um momento de plenitude me invade.
Seria, talvez, saudade do que tenho, do que vive em mim e me preenche.
Contraditóriamente, uma saudade feliz.
Pois é isso mesmo, estou feliz, sentindo saudade.
Tenho, embora sem saudosismo, saudades de uma vida que vivi e aproveitei.
Não me detenho em passagens, episódios, abraço o todo, em uma nostalgia tranquila.
Relembro o quanto valeu a pena as alegrias, as dores, os amores, as aflições e as conquistas.
Guardo na gaveta da memória, acaricio minha história e sigo.
Tenho amigos e amores, nessa gavetinha e, de vez em quando, visito-os.
Com um sorriso meio melancólico, meu olhar se perde do presente e encontra a pontinha de saudade que se esconde no que já foi.
Sinto o quanto é bom ter bagagem, mas bagagem selecionada, com o suficiente prá não parar, ferida e magoada, na estação da dor. Sigo minha viagem com uma malinha de mão, com o imprescindível, sons e imagens que me fortalecem, despejo o que possa me aniquilar, meu coração e minha mente pedem leveza e encontram paz na lembrança.
Mas, hoje, especificamente, estou com saudade do presente, do que estou vivendo e experimentando.
Essa, de hoje, me incentiva à fazer coisas que o medo freava, coisa que eu mesma me negava, por convenções, por limitações, por pensar que poria em risco uma vida reta, regrada, formatada.
Quanta bobagem! Quanto tempo perdido!
Esqueci que a vida acontece, que passa, que não é um ensaio, que é prá valer e tem que valer a pena!
De mim, nunca senti saudade, até hoje.
À partir de agora, sinto saudade do que tenho por viver.
Não vou deixar passar minhas vontades, meus desejos, minha capacidade de transformar cautela em prazer, sonhos em realidade.
Não sou leito de rio, onde as águas passam e vão embora. Vou reter o que for bom, o que for importante, o necessário e insubstituível. Não vou deixar passar nada, a vida, o amor.
Já que não posso negociar com o tempo, vou trapacear e usá-lo à meu favor.
E manipular essa saudade de mim, de um possível nós dois, de um provável final feliz.
Hoje, acordei com muita saudade da vida que inauguro.
Abri todas as portas e janelas prá que ela possa entrar sem pedir licença, todos os dias e morar na felicidade que descobri em mim.
Tenho saudade de mim, em outro.
Tenho mais saudade do outro, em mim.
Hoje, acordei feliz de saudade!





domingo, 22 de abril de 2012

DO LADO DE FORA

Tenho pena de quem acha que sabe tudo.
Tenho compaixão por quem pretende ser o dono da verdade.
Pessoas que têm todas as respostas, ou acham que têm, se fecham para o outro, para o mundo, para a vida.
Se encapsulam no seu pretenso conhecimento para não admitirem que têm muito, ainda, o que aprender.
Fechar os olhos para o que acontece em volta não faz uma pessoa mais sábia ou feliz.
Ao contrário. Isola qualquer chance de aumentar seu mundo interior.
Conseguem se relacionar com pessoas estreitas, curtas, que acham que só existe a sua realidade, ignorando que a realidade é de cada um, soma de experiências distintas. Minha realidade é diferente da sua, que é diferente da do meu vizinho, que é diferente da de outra pessoa. Não é um valor absoluto, nem poderia ser.
Cada um comporta um mundo em si mesmo e é compartilhando e aceitando as diferenças que crescemos, expandimos nosso universo mental e emocional.
Não quero julgar quem fechou a cabeça para o novo, para o desconhecido.
Se é assim que consegue administrar sua solidão, mesmo que povoada, eu entendo.
Mas continuo achando uma pena, triste mesmo, rejeitar, por não entender ou aceitar, pessoas interessantes, inteligentes, amáveis, em seu convívio, por serem território desconhecido.
Há um medo implícito, um preconceito latente, um pavor de perder o discurso se aceitar o que o tiraria da zona de conforto.
O "eu sei" é arrogante, prepotente, o "eu não sei" é instigante, pulsante, ávido. Impulsiona, desafia.
Só quando a cortina final se fecha, determinando que o último ato acabou, é que termina a busca por conhecimento. Até lá, a vida se impõe e merece ser vivida, já que é de graça.
Pessoas limitadas afetiva, intelectual e psicologicamente, fechadas em um mundo acabado, formatado, restrito, bastam-se e não permitem a entrada do vento de mudança.
Suas vidas são trancadas a sete chaves, não renovam o ar. O mofo da estagnação cobre todos os espaços que poderiam ser cultivados se, por acaso, abrissem uma janela para permitir que uma réstia de sol começasse uma invasão de calor.
A arrogância do saber tudo e não precisar conhecer mais nada, não é nada mais do que medo de perder o chão.
Eles não sabem- porque acham que sabem tudo- que o chão em que pisam é árido, porque caminham sós, é seco, porque não há vida para irrigar, é duro, porque não aceitam que possa existir outro solo que não o deles.
Caminharão sòzinhos, com suas certezas, convicções e estreitezas para o único lugar possível de acolhimento: seus egos deformados pela falta de visão, por se imaginarem suficientes, por não entenderem que mundos diversos não precisam, necessariamente, se chocar. Podem ser complementares, harmoniosos. Mas é preciso ter coragem para derrubar a muralha e enxergar, nem que seja por uma pequena fresta, que há um mundo maior que o seu, do lado de fora.

sábado, 21 de abril de 2012

UM NOVO DIA

Um novo dia se apresenta.
Me convida a vivê-lo sem expectativas ou projeções.
Um dia inteiro de novas emoções não programadas.
A cada dia, um novinho se oferece, repleto de surpresas e espantos.
Não há o que temer, se todo dia ele me chama à vida.
Me tira prá dançar, amanhece minha noite, me pede disponibilidade prá, simplesmente, vivê-lo.
Ele me diz que não dói experimentar. E, mesmo que doa, existe a possibilidade de, no dia seguinte, mudar.
Diariamente, esse dia, novo dia, me acorda e me diz que há esperança nele.
Me lembra que segundos são preciosos, que deles se faz as horas que temos prá viver.
E que, como não voltam, não posso, nem devo, desperdiçá-los.
Um dia, novo em folha, aparece à cada dia. Me renasce, me renova.
Me incentiva a escrever novas histórias que serão ou não desenvolvidas em outros dias que virão.
É assim que construímos o caminho.
Selecionamos, à cada dia, o que vai ficar no passado que, um dia, foi presente.
Respirar um dia inteiro, observar cada minuto, sentir a graça de estar vivo, vivendo por mais um dia.
Esquecer que ele tem vinte e quatro horas e vivê-lo como se fosse o último, pois ele é!
Meu novíssimo último dia é muito importante, devo merecê-lo.
Prá isso, é necessário que eu me dedique a usufruí-lo com qualidade, com intensidade, com alegria.
Se a tristeza quiser embotá-lo, permito que se instale por alguns segundos, não mais que isso, pois o resto do dia não deve ser contaminado.
Todo santo dia é dia santo. Ajoelho-me e rezo, pedindo que ele conceda o milagre do amor.
Amar aos outros, amar a mim, ser amada.
Quando insone, prolongo o envelhecimento do dia anterior, passado, e faço com que se transforme em um mais longo, mais vivido, mais aproveitado.
Talvez, não devesse dormir mas, se não o fizer, como raiar um novo dia em mim?
Refugio-me no sono prá reforçar a esperança de um dia melhor.
Durmo prá me preparar para o dia seguinte.
Acordo prá abraçá-lo e me entregar à ele, como uma eterna amante.
Ele me desafiará, me testará, eu erguerei a cabeça e o enfrentarei.
Esse dia, novo dia, o último de cada dia, é o dia em que serei mais feliz.
Até o dia de amanhã, quando serei o passado de hoje.
Simples assim!

quarta-feira, 11 de abril de 2012

TODOS OS SENTIDOS

Ainda hoje, tenho dificuldade em escolher o que comer.
Fora os dias em que bate um desejo irrefreável de encarar uma feijoada, uma moqueca ou algo assim, é um parto decidir, seja em restaurante, seja em casa.
Sempre acho que podia ter pedido ou feito outra coisa.
Se é buffet, fico olhando por horas, esperando que meu cérebro determine que é aquilo mesmo que eu quero comer, que está na quantidade exata do meu apetite, que minhas papilas gustativas vão ser saciadas, enfim, se eu vou ficar satisfeita com a minha escolha. Na maioria das vezes, fico com a sensação de que faltou alguma coisa ou de que exagerei em outra.
Quando criança, a vida é mais fácil, escolhem por nós, determinam nosso desejo e estamos conversados. É aquilo e lambam os beiços.
Nos chamam nas horas precisas, café da manhã, almoço, lanche, etc.
Em casa de meus pais era proibido comer fora de hora, além do dinheiro curto, minha mãe não se prestava a fazer a vontade dos filhos.
Quando estava de bom humor fazia um agrado extra, um pavê, uma torta, mas era muito raro.
Cozinhar prá ela era obrigação, nunca foi prazer, embora cozinhasse bem.
Cresci saudável e despreocupada com a mesa, sentava, comia, agradecia e ponto final.
Saindo das asas protetoras, a porca torceu o rabo. A dúvida me assaltava em uma simples ida à padaria. Será que comia pão doce, sanduíche, croquete?
Restaurante, cardápio, variações de pratos, era uma bagunça na minha cabeça e o desejo por algo não se definia. Quero carne ou peixe? Batatas fritas ou cozidas? Salada de entrada ou frios? Eterna dúvida e constante arrependimento. Meu estômago e meu cérebro não conseguiam chegar a um acordo. Era cada um por si.
O resultado é que tenho preguiça de comer, como por necessidade, deste pecado, a gula, estou livre.
Deve ser por isso que tenho outros pecadilhos, nenhum pecado capital, nada muito comprometedor.
Todo mundo tem uma compulsão, tenho a minha e não vou me expor.
Canalizei meu apetite prá outras coisas, nada imoral ou ilegal, mas meu prazer desviou-se da mesa.
Fora o paladar, meus outros quatro sentidos são exacerbados. E ainda tem o sexto, hiper desenvolvido.
Pressinto encrenca longe.
O diabo é que pressentir não me afasta dela, por vezes me atrai, mesmo sabendo que vou me estrepar.
Como uma mosquinha atraída pela aranha, caio na teia e fico presa. É uma dureza, depois, me desvencilhar da cilada que eu pressenti. Confio nos meus instintos mas, mais de uma vez, meu cérebro não acompanhou minha intuição. Vou morrer sem acertar esses ponteiros.
Minha visão já não é a mesma, literalmente falando. Óculos de leitura dão uma ajuda considerável. Mas enxergo além do que vejo, não sei se é pretensão ou se leio, mesmo, o que não é visto. A verdade é que, quase sempre, enxergo o outro com raio x. Não tenho controle sobre isso. Quando percebo, já estou analisando, até porque o corpo fala e desmente muitas palavras ditas. Eu percebo, não me pergunte como.
A contradição é transparente, prá mim. Chega a ser aflitivo, querer me desconectar da lucidez.
O olfato é um sentido canino, em mim. Vou longe na lembrança de cheiros que me lembram alguém, algum lugar, minha memória emotiva é ativada e desembesta a me remeter à coisas que quero, às vezes, esquecer. Farejo, esse é o verbo, sou uma perdigueira, me guio pelo olfato. Por isso, adoro um bom perfume, suave, discreto, insinuante. Como um cão, odeio odores fortes. Cheiro de limpeza, de capim depois da chuva, de terra molhada, de maresia, são afrodisíacos. Odores desagradáveis agridem meu olfato. 
A audição é o sentido que me dá alegria ou tristeza, prazer ou angústia, sou, reconhecidamente, emprenhada pelos ouvidos. Adoro música, em um volume suportável, que eu possa ouvir sem arrebentar os tímpanos, que permita conversa sem gritos. Amo as palavras e o que é feito com elas.
Tomo cuidado com o que digo, quero ser entendida, as palavras precisam de objetivo, mesmo quando jogadas fora, se é essa a intenção. Sou uma boa ouvinte. Tenho prazer em buscar a palavra exata, a que encaixa, a palavra redonda, sem arestas ou que dê margem à outra interpretação que não seja àquela que me fez dizê-la. Mesmo as metáforas precisam de clareza. Uma única palavra pode destruir um encantamento. Por exemplo: "Queria te encontrar mas...". Não, por favor, o "mas" quebrou o fluxo, depois do "mas" pode dizer o que quiser- e pode até ser "eu te amo"- os ouvidos fecham e a boca amarga. Palavra mal encaixada não se diz e, principalmente, faz com que não se ouça o restante.
Por fim, o tato. Ah, o tato é tudo. Com ele vamos ao céu. Os desprovidos dele são grosseiros. Tatear, descobrir, desbravar, buscar o prazer, a sensação, desenhar com a ponta dos dedos, experimentar texturas, fazer a química acontecer, devagar, saboreando a reação.
Fora o ter tato ao lidar com o outro, mas esse é outro tato.
A eterna procura do amor tem todos os seis sentidos e mais um agregado. Esse estranho no ninho dos sentidos se chama confiança.
Confiar em que todos eles vão te levar à alguma concretude e que, se um deles falhar, ainda assim será possível se equilibrar entre os outros.
Mas, preste muita atenção ao que o sexto soprar em seu ouvido. Geralmente, ele está certo!
Aí, não adianta ter intimidade com os outros sentidos.
Quando o sexto sentido gritar: ENCRENCA!, corra, porque os outros sentidos vão tentar iludir e trapacear, fingir que é alarme falso.
Embora com quatro sentidos apuradíssimos e um meio capenga, é o sexto sentido que me guia na vida.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

DAS AFETAÇÕES

Amar. Verbo transitivo.
E, por ser transitório, efêmero.
Conjugado por duas pessoas, unindo uma à outra.
Diz-se que amar emburrece, embrutece, enlouquece.
Prefiro o amor que aquece, protege, amansa.
Sou romântica, por fim admito.
Amar é uma benção particular, uma oração codificada, um canto gregoriano, a liturgia dos amantes, uma celebração do encontro. Hosana nas alturas!
As afetações românticas, infelizmente, trazem consigo outras afetações contrastantes.
Ciúme, posse, desconfiança, medo, cobranças, exigências descabidas e, então, o efêmero acontece.
Seria ingênuo acreditar que o amor não traz transtorno emocional.
O ajuste entre as pessoas afetadas é processual e, no processo, pode-se perder a segurança inicial.
Personalidades distintas, vidas diferentes, hábitos incompatíveis se misturam ao amor e enfraquecem a confiança.
Lutar pelo que se quer fica mais difícil, quando entram em campo os soldados das defesas.
Defendemos o direito à individualidade, às opiniões, às vontades e necessidades.
Exigimos respeito à essas afetações, entrega, como se, do dia para à noite, fosse possível trocar de pele, de história.
Boicotamos as possibilidades por absoluta irracionalidade.
Se pensarmos que, ao amar o outro, abrimos mão de nos amarmos, não existe afetação, existe carência. E carência não conjuga com o verbo amar.
Se estou sendo amada, como posso estar carente?
Se continuo carente, não confio nesse amor.
Se não confio, cobro, brigo por espaço e, nessa luta, desisto.
É mais fácil amar do que ser amada.
Quando amo, despejo afeto, escolho as palavras que me façam ser melhor entendida, tenho cuidado, respeito, carinho, procuro não magoar, tento equilibrar os desacertos, não invado, peço licença prá entrar e repartir o espaço emocional que conquistamos. Mas eu sou assim, o outro é assado.
Quando sou amada sou cobrada por essa afetação, como se fosse culpada por ter feito alguém gostar de mim, como se não quisesse e eu obrigasse a querer, sou responsável pelo amor que o outro sente.
Cai no padrão de suas escolhas e, consequentemente, de suas experiências. Não se dá a chance de mudar e viver outro tipo de amor, mais maduro, menos urgente, mais sério e, talvez, mais prazeroso.
Amar sem obrigações, amar só pelo prazer de estar, ter, ficar com quem se quer
Amor acontece, é química, não é premeditado.
Amar não escolhe, a única escolha é ficar ou não com esse amor.
Eu prefiro ficar mas entendo quem não tenha capacidade de lidar com as faltas que o amor traz.
Falta de ar, falta de presença constante, falta de coragem de se entregar, de se atirar do penhasco, de dançar um tango argentino e, talvez, gostar.
Dividir essa afetação, distribuir aos amigos e contagiar quem está em volta, percebendo, intuindo o amor emanado, é um sinal de generosidade que só o amar verdadeiramente é capaz de emitir.
Condicionar amor unicamente a presença física é diminuir o próprio afeto. Este resiste à ausência, à falta, até à morte.
Amar, ensina. Amar, não prende. Amar, conforta. Amar, não julga. Amar, não ofende.
Amar, por fim, dignifica e pacifica.
Amar é verbo. Transitivo ou transitório somos nós, até que me provem o contrário.

sexta-feira, 23 de março de 2012

TECELÃ

Embaixo do tapete,
por baixo dos panos,
acima de nós,
além de mim.

Não é poeira,
não há maneira
de esconder.

Decidir é escolher,
escolher é negar,
negar um de dois,
perder ou ganhar.

Abrir mão,
fechar questão,
mirar o alvo,
acertar o erro.


Ter e  não ver,
que querer não é poder,
e podendo, desistir, não fazer.

Molhar a boca,
piscar o olho,
morder a língua,
e soprar segredos.

Trincar os dentes,
cravar as unhas,,
e sorver a última gota
do teu cálice.
Me embriagar.

E o ópio,
e o vício,
e a droga,
a adição do outro.

Bater de frente,
cruzar fronteira,
romper barreira,
perder o rumo.

Desviar do caminho,
chutar as pedras,
mandar às favas
a razão.

Nosso caminho dá no mesmo lugar.

Ser tua,
ser meu,
ser minha
e ser só.

Meu gozo,
minha paixão,
minha virtude e
minha perdição.

Somos um, entrelaçados,
somos um mais um,
separados.

Venha, seja meu.
Sou sua e
vou, contigo,
ser nós.

Debaixo do tapete,
existe nossa história.

Embaixo do tapete,
tecemos nossa vida.

ECOS

Por que destruir pontes? Pelo simples fato de que não se pode atravessá-las?
Por que queimar navios? Por não poder navegar?
Por que fechar portas? Por precisar de permissão prá entrar?
A raiva que move o erro, também, pode precipitar a mágoa.
Nada é certo, tampouco definitivo. A vida acontece.
Por que julgar o proceder do outro sem conhecer a causa?
Minutos, horas, não dão argumentos consistentes prá fazer juízo do outro.
O caminhar é construído pela estrada que se apresenta, ora reta e tranquila, ora acidentada, difícil.
Quando acha que sabe de tudo, aí é que nada sabe. Mas julga.
Não sabe dos tropeços, da agonia, da solidão.
Não sabe das alegrias, das compensações, da força que precisa ter prá continuar.
Mais fácil é, de fora, determinar a falha, de caráter, de vontade, de dignidade.
Quantas vezes nos pegamos criticando as atitudes do outro, nos dizendo que jamais faríamos o que o outro faz.
Acontece que teríamos que calçar os sapatos do outro e caminhar pela mesma rota traçada pela escolha alheia. Certa ou errada, foi a vida acontecendo e exigindo respostas imediatas.
Minha história foi escrita por mim e não quero dizer que acertei todas as questões apresentadas.
Quer dizer que, no momento em que acontecia, não havia como prever a conta do futuro.
Sou produto das minhas opções, outras escolhas fariam outra história, talvez mais fácil.
Mas não há como retroceder, vivo com as sobras do passado, tento sobreviver, existir no presente.
Não sou egoísta à ponto de fazer sòmente o que me interessa. Não sou uma ilha.
Vidas se interligam à minha e tenho que ter cuidado e respeito, devo equilibrar desejos e necessidades, tentando adaptar meu espaço e, se necessário, cedê-lo.
Não esqueci de mim mas não consigo negar assistência à quem precisa.
Uma conversa, um olhar, um sorriso, às vezes é tão pouco que não me tira nenhum pedaço.
Às vezes é muito mais, é uma presença constante, uma mão segurando o eternizado momento de fraqueza, uma impossibilidade de se negar apoio. É a vida apresentando a conta.
Mas nada, nada, nada, dá o direito, à quem quer que seja, de julgar e condenar uma pessoa pelas escolhas feitas e tentar crucificar alguém por erros cometidos em situações improváveis mas, absolutamente, reais.
A realidade é a soma de todos os erros e acertos`. É transformar a perda em recompensa.
Talvez eu não tenha tido a habilidade de lidar com as dificuldades e, como não sabia contorná-las, assumia e seguia.
Crescer, dói.
Amadurecer com enganos, tira a alegria de estar no mundo.
Envelhecer, pacifica.
Apesar de todos os pesares, do amor próprio ferido, da dignidade fraturada, da vontade subjugada, da possível submissão, não tenho o direito de me arrepender e não posso permitir que me julguem por um passado que só eu vivi.
Mesmo não tendo me acompanhado no meu caminho, não tendo presenciado minhas lutas interiores, não tendo me conhecido, mesmo assim, sou julgada.
Eu me credito um pouco de aceitação e respeito pelo que fiz de mim.
Não procuro entendimento ou compreensão, mas não aceito julgamento sumário por quem não é capaz de lidar com a humanidade de ser.
Simples, é simples, assim. Ser humano.
Pior, ainda, é abrir seu "livro" interior, sua vida, e ser traída e apedrejada por ser quem é. Por fazer o que é preciso. Por ser, talvez, chantageada.
Ainda que eu fosse indigna, uma fraude, um desastre emocional, ainda assim, mereceria, pelo menos, atenção.
Recuso advogado de defesa e recuso, também, juiz tendencioso, eu sou meu próprio juiz e não preciso me defender. É a mim que devo me reportar. É comigo que tenho que me entender.
Nada devo e nada cobro, a não ser que me deixem respirar meu próprio ar, contaminado, que seja.
Sem inquisição, sem tribunal de exceção, sem execução sumária.
E, por fim, em última instância, cito Nelson Rodrigues:
Perdoa-me por me traíres!

domingo, 18 de março de 2012

CARTA A UM DESCONHECIDO

Meu caro amigo.
Não sei quem você é, sei que preciso de você.
Queria te dizer de mim, queria saber de você, de sua vida, de seus sonhos.
Queria ser aquela que compartilha momentos bons, ser a que protege de momentos maus.
Queria conhecer quem me tira o sono, me faz ficar desperta, me acompanha na vigília.
Tenho você em mim, dentro de mim.
Tenho uma vida tranquila e centrada. Ou tinha.
Tenho histórias prá contar e tempo prá ouvir outras narrativas, novas, estimulantes.
Queria te conhecer.
Queria encontrar esse amigo que habita meu imaginário, que entra, sem ser esperado, no meu espaço tão duramente preservado, que invade meu tempo, que rouba minha solidão ao me fazer companhia.
Queria, meu amigo, dar voz e corpo a uma sombra que surgiu.
Queria desfrutar essa comunhão, essa aproximação.
O fato de você não existir no meu mundo, me faz querer viajar por outros, buscando o que nos seja comum.
Na verdade, não deveria conhecê-lo, não quero quebrar a força que me mantém, não quero perder o juízo. Ou será que já perdi?
Você se tornou o ideal e inatingível, a possibilidade remota e perseguida, o motivo e a razão.
Criei esse amigo, fui criada por ele. Esse amigo me entende, estimula, acompanha e preenche, me afoga em esperança.
Gosto de saber que você existe, gosto de te procurar em pessoas impossíveis.
Me impulsiona saber que essa procura pode ter fim, ao achá-lo.
Saiba, querido amigo, que sua casa é minha cabeça, ninguém entra ou sai dela sem minha permissão.
Entenda que te protejo porque você mora em mim, em um território escriturado, com aviso de "Não transpassem".
Amigo querido, você e eu nos pertencemos porque somos estranhos, sem passado, talvez sem futuro.
Nos aproximamos porque estamos afastados, porque somos a possível impossibilidade.
Somos amigos porque não nos conhecemos, porque não temos interferências, ruídos, porque imaginamos, criamos, e mantemos laços estreitos de afeto, desatamos nós antes de serem apertados, respiramos através das letras.
Não sei quem você é. Você me escapa entre os dedos, não aprendi a retê-lo.
Murmuramos entre nós, dialogamos mentalmente, já nos pertencemos.
E, ao pensar em você, construo um lugar, o mais próximo possível da felicidade.
E tenho muito tempo, ainda, prá encontrar a alegria que guardamos prá nós.
Com você, posso ser outra.
Meu mundo se expande, meu afeto me espanta, tua presença, ausente, me acompanha. Tenho alguém, mesmo não te tendo.
Tenho a certeza de ter achado, no meu último momento, o que esperei a vida inteira.
Simples, assim.
Com amor...

quinta-feira, 8 de março de 2012

DE CORPO INTEIRO / RETRATO

Um olhar, enviesado.
Um sorriso, desconfiado.
Um tocar, atrapalhado.
Um gostar, envergonhado.
Um carinho, represado.
Um beijo, abortado.
Um corpo, acalorado.

Frases, mal formuladas.
Palavras, profanadas.
Ações, mal cuidadas.
Silêncio.

Mente, inquieta.
Alma, retorcida.
Dores.

Querer e não saber,
se quer o que sabe que tem.
Saber que o que se quer,
tem um preço, ao se ter.

Pagar prá ver ou
ter sem pagar?

Nascer e morrer
e, no meio, viver.

E nessa vida, no meio,
responder, afirmar, sentir, amar.

Ser menina, ser mulher,
ser louca e recatada,
ser perdida e procurada,
ser cama e mesa,
ser o que nem sabe que é.

Enxergar, não só ver.
Ouvir, não só escutar.
Dizer, não só falar.

Percorrer a estrada do corpo,
buscando a explosão que destrói represas,
que causa enchentes e desatinos.

E sorrindo, morrer um pouco, de tanto prazer.

terça-feira, 6 de março de 2012

IMENSIDÃO

A natureza é sábia.
Nos dá o sol, a chuva, estrelas, lua, fauna e flora, belezas em por do sol, raios e trovões, mares, lagos, águas que se transformam em ondas, gelo, quedas d'água que nos presenteiam com arco-íris. Nos dá dias e noites, nos dá a dimensão do que somos diante dela: figurantes em seu cenário.
A natureza é avassaladora com seus terremotos, tsunamis, furacões, tempestades, avalanches e nos mostra quão impotentes somos diante de sua fúria.
Sabemos que temos que nos curvar e admitir a fragilidade humana.
A natureza é uma força incontrolável e inesperada, trapaceia as previsões da ciência que quer domá-la. Exerce seu poder transformador e muda o que quiser, sem nenhuma chance de controle.
Fazendo parte da natureza, também temos nossos dias de fúria, de lago tranquilo, de terremotos existenciais, de geleiras sólidas, de estrelas cadentes.
A lua nos determina ciclos, as estrelas nos apontam caminhos.
A microscópica situação humana é irrelevante diante de tamanha força.

É só isso que sou, um grão de areia sem nenhuma importância.
E, só porisso, tento inventar meu mundo, construir minha natureza.
Assim, quem sabe, encontre um outro mundo, construido por outra pessoa, onde seja possível descontrolar as marés.
E deixar que as águas rolem, que o tempo mude, que a árvore cresça, que o ar envolva.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

ÚLTIMA CHAMADA

"Queima total! Grande liquidação!
Aproveite os preços de ocasião!
Venda com descontos de até 99 por cento!"
Resolvi fechar minha lojinha de possibilidades.
Com o estoque encalhado, fiquei sem capital de giro.
Minha mercadoria está com validade vencida e não consigo parar de ter novas idéias sem ter mercado prá desová-las.
Considerei a possibilidade de passar o ponto mas não há interessados.
Aliás, não sei como ter contato pessoal com outro ser humano.
Porisso, desisti de procurar.
Não existe mais possibilidade aplicável.
Sempre achei que o contato entre pessoas, olho no olho, cara a cara, fosse o principal motivo de dar chance à química de se manifestar, a causa de se fazer amigos, amores, laços.
Dei de cara com um muro quase intransponível, o mundo virtual.
Meus amigos, conquistados com abraços, sorrisos e corpo presente, agora se manifestam através de emails, facebucando a relação.
Telefone, voz, só em em caso de emergência.
Até a morte é comunicada virtualmente!
A insensibilidade parece ser a maneira de se preservar da dor, da compaixão.
Tudo virou postagem. Tudo é em tempo real e impessoal.
Como conversar sobre uma aflição? Como perceber que, do outro lado da tela, existe uma pessoa que se preocupa, que dispõe do seu tempo prá ouvir, que seja, o seu apelo?
Todos viraram amigos virtuais. O que isso quer dizer? Que você me conhece, que temos afinidades, que conquistamos um ao outro?
Vejo pessoas procurando em sites de relacionamento, um ser compatível com seus desejos.
Como se fosse possível acreditar que alguém vai expor outra coisa que não o pedido.
"Quero uma loura, com 1,70 m, dentes perfeitos, independente, carinhosa, paciente, que me aceite e compreenda minhas imperfeições." Do outro lado, responde através das teclas, uma morena baixinha, carente, com prótese nos dentes, sub empregada e desesperada prá encontrar alguém que possa se relacionar, nem que seja virtualmente.
"Sou um homem carinhoso, bem resolvido financeiramente, atlético mas muito tímido, temeroso de me quererem pelo que sou, exteriormente." Então, tá! Esse homem estaria solto no mercado das carnes? Me engana que eu gosto!
Perceber essa busca solitária me atormenta, me deixa louca da vida, me põe de frente com as impossibilidades, eu que acredito nas possibilidades.
Inventamos quem queremos ser, sem ter o trabalho de procurarmos ser.
Trocamos de máscara segundo a vontade do internauta.
Certa vez, testando até onde a invenção pode levar a imaginação do outro, coloquei um perfil - falso, como quase todos- em que me dizia loura NATURAL (sou morena), alta (meço 1,63), magra (isso eu sou), enfim, todos os predicados exigidos pelos pretendentes da rede. Conclusão, 73 interessados. Só rindo. Setenta e tres idiotas que acreditaram na própria fantasia.
Um amigo entregou os pontos à internet e resolveu buscar um par. Mas, espertamente, marcou o encontro - óbvio que se colocou como o último biscoito do pacote, coisa que, definitivamente, ele não é-  foi ao encontro com roupas diferentes do que ele tinha dito que ia, chegou bem mais cedo e esperou que a escolhida chegasse. Preciso narrar o que aconteceu? Tá bom, eu conto. A pretendida se vendeu como modelo de mulher perfeita, corpo irretocável, bonita, inteligente, essas coisas que viraram chavão no imaginário da grande maioria dos homens, e a coitada era, simplesmente uma mulher comum, nem bonita, nem feia, nem alta, nem nada daquilo que ela dizia ser. Se era inteligente, ele não ficou prá saber. Provavelmente, não era.  Não se exporia à mentira que criara prá encontrar um engano. Quando ele viu aquela mulher, ele entendeu que a vulnerabilidade dos dois levou a um erro de pessoa, nada era verdadeiro ali, a intenção, ela e, muito menos, ele.
Me dizem, os facebucados, que têm 543.921 amigos. Ahan! Como? Que tempo têm prá estabelecer contato mais aprofundado prá reconhecer um único amigo? Como chamar de amigo alguém que está se relacionando através de um teclado? Na solidão, cada vez maior, de seu quarto ou escritório?
Onde mãos não se tocam, não se trocam sorrisos, afetos, carinhos, onde o som da voz não é ouvido?
Ou pensam que pressionando as teclas estão trocando carícias?
Só cego usa as digitais prá reconhecer e acarinhar o outro, desenvolveram a sensibilidade ao toque. Sentem o outro através do leve toque mas, mesmo eles, precisam do contato pessoal. E dizem que, por essa deficiência, são os melhores amantes. Porque imaginam o outro, são sensíveis aos cheiros, gostos e, delicadamente, usam as mãos no outro. Preciso provar essa tese.
Meu balcão de afetos está repleto de carinhos sem uso, novos, na caixa, têm até manual de instrução para aqueles que esqueceram como funciona, mas, infelizmente, não há quem queira comprar.
A cestinha de conquistas está meio empoeirada mas, com uma soprada de interesse, elas voltam ao brilho original.
Minha loja de contato e possibilidades está com as prateleiras cheias de amores esquecidos, de carinhos mofados, de possíveis relações perdidas e de cumplicidade desbotada.
Como, no mundo real, não há interessados na compra, resolvi, ou dar de graça, sem esperar nada em troca, ou deixar, em inventário, prá uma próxima geração que se interesse em pesquisar, como arqueólogos de emoções, como era possível, há pouco tempo atrás, procurar a felicidade ou a dor, convivendo, tocando, de corpo presente, sem mentiras ou fantasias.
Essa é uma chamada final, os interessados em uma vida com luz, sons, gente, saiam de suas tocas, onde preservam suas solidões achando que estão interagindo com o mundo, e descubram o que é viver de verdade.
Queria que fosse possível uma reinauguração.
Mas acho que esse é mais um item inútil na minha fracassada negociação com esse novo mundo de relações vazias.
Pena!

sábado, 18 de fevereiro de 2012

FUGA

Não é que eu seja exigente, sou seletiva.
Tentam me vender gato por lebre e acham que vou engolir.
Não aceito que me empurrem, goela abaixo, menos do que me devem.
Sei que, às vêzes, tenho mais do que preciso, mais afeto, mais paciência, mais jogo de cintura, mais espaço e, em determinadas ocasiões, menos, muito menos.
Acham que amar basta mas, meu caro, amar não basta. Em todos os sentidos.
Amar não é determinar o que o outro merece. Amor é verbo conjugado a dois, sem esquecer que o parceiro é um indivíduo e não metade. Não sou meia pessoa, não sou sombra de ninguém.
Não admito que sombreem minha vida, assim como não permito que qualquer pessoa se deite em minha sombra.
Nunca enganei ninguém, o que se vê é o que se tem. Nunca fui de jogar prá ganhar, sempre fui transparente.
Amar é laço, não é nó.
Se apertam o nó, falta oxigênio e sem respirar, morro.
Todo início de relação deveria ser o momento de usar o manual de instrução:
1° passo: Não esqueça que o produto é frágil, cuidado quando manusear!
2° passo: Quando o aparelho super aquecer, se afaste por algum tempo para que ele esfrie.
3° passo: Não deve ser usado diariamente para não haver desgaste.
4° passo: Use com moderação e atenção para mantê-lo em perfeito funcionamento.
5° passo: Quando precisar de assistência técnica, talvez seja o momento de trocá-lo.
6° passo: Em caso de troca, mantenha distância do antigo.
Isso evitaria muita dor de cabeça.
Desconfiei que nosso produto estava deteriorando quando começou o cuidado extremado, o interrogatório, o controle.
Saiba que nem a mim dou satisfações do que faço. Se não é imoral nem ilegal, faço.
Nunca te trai e confesso que você merecia. Acontece que não sou assim, não sei começar nada sem terminar e enterrar o que passou. Até porque, o próximo não tem que pagar as penas do anterior. Se vou prá uma relação, vou zerada. Seria um desperdício de tempo e energia ficar cobrando os erros de uma outra pessoa. Cada relação tem um código, escrito pelos que estão nela, acordado pelas partes.
Ainda não nasceu quem me diga o que posso ou não posso, devo ou não devo fazer. Não sou maluca nem impulsiva, uso meu cérebro e os limites dos outros prá perceber até onde posso ir sem arrombar a porta da privacidade.
Respeito silêncios e sumiços, melhor não falar quando não se tem nada prá dizer, bem melhor sumir quando falta espaço, quando o garrote sufoca.
Não sou criança prá que me digam onde posso ir, com quem devo estar. Sou criança quando me divirto, quando escancaro o riso e brinco, gosto de brincar.
Sou responsável por mim e não sou deficiente emocional, não preciso de bengala prá apoiar meus desacertos. São meus e deles eu cuido.
Mas, também, não sou analista de plantão prá que despejem em meus ouvidos as agruras de uma vida muito mal resolvida.
Não que a minha seja sem problemas, ela é cheia deles, mas, por favor, estar com alguém deveria ser mais prazeroso e menos enfadonho e repetitivo.
Todo mundo tem seu dia de raios e trovões, cansei de me ensopar nas minhas tempestades emocionais, me lanhei em relações espinhosas, sangrei com cortes secos, mas lambia minhas feridas e esperava cicatrizar sem alugar um incauto qualquer.
Não uso afeto como peça de reposição, sai um entra outro. Não sofro dessa carência, graças a Deus.
E aprendi a sair com elegância em qualquer situação, chutando ou sendo chutada.
Você foi propaganda enganosa, vendeu o que não tinha, mostrou o produto maquiado.
Foi o próprio "médico e monstro", início gentil, divertido, atencioso, e se transformou quando me envolvi e confiei.
Sou difícil de ser enganada mas você conseguiu. Que ator! Que talento desperdiçado!
Como não sou platéia, sequer aplaudo.
Se vale o conselho, não pese a mão na próxima, deixe espaço prá respirar, enterre os fantasmas de outras que passaram em sua vida, enxergue com outros olhos seu próximo amor, faça com que ele seja leve, suave, escolha ser feliz, despreocupado. Ninguém fica com ninguém, se não quiser, não adianta forçar, perde o encanto, perde o prazer, a espontaneidade, perde a razão de amar.
Construa uma vida com espaço suficiente prá dois, deixe portas e janelas abertas, assim, vendo que se tem liberdade, sempre se escolhe ficar.
Eu escolhi partir e, ao sair, espero ter fechado prá sempre a porta estreita por onde escapei.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

HO! HO! HO!

Só um minutinho, vou lá na esquina e já volto!
É o que dá vontade de fazer, em fim de ano.
Juro que tenho ganas, todo bendito ano, de sumir em 1° de dezembro e só voltar depois do carnaval!
Rapaz, é muita pressão!
A fúria assassina de presentes, visitas ao shopping, lembrancinhas de última hora, preparação de ceia, obrigação de estar feliz - e não interessa se você É feliz ou não- receber com sorrisos quem você sabe que vai sair falando mal de tudo - desde o peru que estava mal temperado até o presente que vai ser repassado prá ajudante do lar- trabalhar que nem uma égua puxando carroça, e, ainda por cima, ter que se preparar prá receber em alto estilo: unhas e cabelos bem feitos, roupa impecável, perfume suave e muito guaraná em pó prá segurar o antes e o depois da ceia.
Finda a noite, resta a cozinha em frangalhos, exatamente como seu corpinho, pés doendo por causa daquela sandália ma-ra-vi-lho-sa mas absolutamente imprópria prá quem vai ficar em pé a noite toda.
Ai, que vontade de chorar quando olho prá pia e vejo que a noite vai ser um pouquinho mais longa do que eu queria.
Completada a organização, depois de duas horas limpando e guardando louças, rearrumando a geladeira prá caber toda a sobra, dando uma geral na casa - vício que herdei de minha mãe que dizia: "Casa tem que dormir arrumada, vai que passa mal à noite e tem que chamar um médico? Imagina a vergonha!" - preparo-me prá dormir.
Tomo um longo banho - com direito a sais e espuma, que eu mereço - ligo o ar condicionado, porque Natal nos trópicos só perde prá sauna à vapor e me deito.
Cadê o sono?
A agitação foi tamanha que o sono se perdeu no caminho.
Rolo prá cá, rolo prá lá, pego um livro, ligo a televisão - potente sonífero prá mim - e nada.
Nesse maldito instante, a cabeça começa a funcionar à mil.
_"Xô, pensamento, vou imaginar uma página em branco" e vejo, literalmente, uma ...página em branco, e a infeliz não vai embora!
Quando, enfim, caio no sono, toca o despertador. Desorientada desligo o celular, segundos depois a campainha da porta toca e eu soco o despertador. A campainha soa, novamente, aí me dou conta de que são algumas pessoas que voltaram para o "enterro dos ossos".
Pulo da cama, visto qualquer coisa que está à mão, abro a porta e dou de cara com aqueles que acabaram de sair. Foram prá casa e encontraram tudo limpo e em ordem, deitaram, dormiram, fofocaram sobre a noite passada e voltaram prá recomeçar.
A zumbi, apatetada pela noite mal dormida, vai recomeçar a função que mal terminou.
Sem falar nas saias justas que, infalivelmente, acontecem.
Família é um poço de histórias mal resolvidas.
Tem a mulher do irmão que se porta como uma rainha e tem que ter tudo à mão, não se levanta nem prá esfriar a cadeira, as crianças que infernizam com seus gritos e choros e não se pode reclamar porque os pais se ofendem, a tia solteirona e seus achaques prá chamar atenção, o primo que fala como se estivesse brigando e tem sempre razão, diga a asneira que disser, tem o tio super, hiper animado que, depois de algumas doses, resvala na grosseria e constrange a mulher, a prima gostosa que conta prá quem queira ouvir - e também prá quem não queira - suas conquistas e os destroços humanos que deixa pelo caminho e os irmãos que cobram qualquer coisa e sempre, aconteça o que acontecer, relembram a infância e as "artes" que EU fazia. Eles eram perfeitos, eu era a atrapalhada que só fazia bobagem. Ai, Deus, dai-me...
Fico observando e tendo a impressão que, não importa o ano, é sempre a mesma coisa: a mesma conversa, os mesmos conflitos, as mesmas pessoas, como se, naquela data, descongelassem e repetissem a mesma situação.
A tarde passava em câmera lenta, até que, repentinamente, aconteceu algo novo e desconcertante.
Uma tia, a constrangida, levantou-se, bateu com a colher na taça e pediu a atenção de todos.
_"Silêncio, por favor. Quero aproveitar esse momento em que a família está quase toda presente para fazer um comunicado. Sei que alguns vão se surpreender, outros meio que esperavam mas não acreditavam que, um dia, fosse acontecer. Depois de 33 anos engolindo um sapo gigante, resolvi - e estou dizendo, em primeira mão, ao interessado - dar uma banana pro panaca do meu marido".
Silêncio sepulcral!
O tio, que até então era o idiota da corte, arregalou os olhos e perdeu a fala.
Começou o zum zum zum, pessoas falavam, gesticulavam, perguntavam, completamente atônitos por aquele banho de água fria.
A tia, impassível, bateu novamente no copo até a sala silenciar.
_" Vocês sempre souberam que eu fiz uma péssima escolha. Suportei esse projeto de anta, mais por não querer dar o braço à torcer, confesso. Tá certo, 33 anos foi um pouco demais. Mas tivemos filhos e a vida foi passando. Esperei que ele percebesse minha insatisfação e fizesse alguma coisa prá mudar. Mas tudo que eu conseguia era mais piadinhas e mais constrangimento. Até que, ontem, bêbado e sem noção, como sempre, ele teve o descaramento de me presentear com a notícia que faltava prá entornar o chopp".
O tio perdeu o sangue, ficou branco como a página que eu imaginei na minha insônia, foi escorregando pela parede com a mão no peito e caiu sentado no chão.
Todos correram prá acudir. A tia, impávida, não se mexeu.
Meu irmão dizia que ele estava infartando, minha irmã dizia que era aneurisma, as crianças, bem... as crianças sumiram, retiradas pela cunhada-rainha.
_"Liga prá algum médico".
_"Que médico, nada, vamos levar direto pro hospital."
_"Tosse, tio, eu li que ajuda!"
_"Desabotoa a calça dele."
_"Abana, ele está sem ar."
_"Isso era hora de acertar contas com o coitado?"
_ "Não podia esperar até chegar em casa?"
Tudo dito ao mesmo tempo.
Arrastaram o homem para o hospital mais próximo, onde ficou em observação.
A casa esvaziou, sobramos eu e minha tia.
Ficamos ali, procurando o que fazer, esperando alguma notícia.
Enquanto ela bebericava, calmamente, eu e o meu TOC limpávamos a casa. Em momentos de aflição eu desando a arrumar, lavar, esfregar, organizar, essas coisas sãs.
Depois de uma eternidade, o telefone toca e nos informam que ele está bem, não havia nada no coração, provavelmente tinha sido uma manifestação de pânico, a tal da síndrome.
Nos olhamos por algum tempo, até que tomei coragem e perguntei qual era, afinal, a tal notícia.
Minha tia deu um sorriso enigmático e disse:
_"Mais uma vez, ele conseguiu arrebatar a platéia e me deixou sem audiência."
_"Como assim, tia? Ele passou mal!"
_"Previsível, vindo  dele."
_"Tá bom, não vou me meter nessa briga."
_"E qual é a graça de contar, logo à você, a bomba que ele me atirou? Você não é uma fonte confiável."
_"Eu não sou...por que?"
_"Minha querida, quando contamos um segredo à alguém e pedimos reserva, quer dizer que queremos que todos saibam mas não pela nossa boca. Você não conta seus segredos nem para o travesseiro, como vai espalhar o meu?"
_"Mas não era segredo, tanto que você disse que ia fazer um "comunicado oficial."
_"Exato. Só que, se eu contar só a você, vai morrer aí."
_"E se ele, realmente, tivesse tido um piripaque e morresse?"
_"Seria a glória! Teria uma platéia muito maior no enterro. Faria um discurso de levantar defunto. Ele iria se contorcer por toda a eternidade. Taí, seria o momento ideal."
_"Nossa, tia, você tem uma mágoa sem tamanho!"
_"Minha querida, ele não perde por esperar. Você acha que eu vou perder a oportunidade de dar o troco?"
_"Não entendi", respondi.
_"Vingança é um prato que se come frio. Nem que eu tenha que esperar mais um ano. No próximo Natal, quando estivermos novamente reunidos na sua casa, vocês saberão. Quem aguentou 33 anos, aguenta 34. Da vergonha ele não escapa!".
 E mais não disse.
Pegou a bolsa e foi embora.
A sala me pareceu maior do que era, realmente. O ar, pesado de silêncio.
Deus, ai, Deus, todo poderoso, quem não aguenta outro Natal sou eu.
Ainda mais, depois desta ameaça de destruição.
Zonza e abestalhada, começo a falar em voz alta.
"Pai nosso, estais aí no céu?
Perdoai essas ofensas e perdoai, também, os que ofendem ou são ofendidos.
Não me deixeis cair na tentação da curiosidade e livrai-me, por favor, do Natal.
Amém!"