quarta-feira, 23 de março de 2011

TIM TIM POR TIM TIM

Já chegou batendo com a mão espalmada sobre o balcão.
- Chega pro lado de cá, Zequinha, vamo levá uma conversinha.
- Jaqueline, que sastifação!
- Sastifação, uma ova, quero trocá umas idéia contigo.
- O Nem te expricô direito o que eu tô querendo fazê?
- Tu num tá querendo fazê nada, tu tá querendo é que a pessoa aqui faz pra você.
- Minha querida, vai sê bom pros dois lado.
- Vamo combiná esse treco.
- Seguinte, tu faz os tira gosto e eu ofereço o bar pra tu vendê.
- Peraí, colega, que o buraco é mais embaixo.
Nem chega e vai sentando na única mesa do recinto.
- Ô Nem, tu num disse cumé que é a parceria?
- O Nem vai ficar é com a boca fechada, que a conversa é com quem vai suá a camisa, no caso, eu.
- Tá certa, só perguntei se ele tinha...
- Ele falô comigo e eu vim aqui pra acertá uns pobreminha.
- Ah, então pode falá.
- Vô falá rápido que eu já tô com o feijão no fogo pra fazê os caldinho pra amanhã. A cumadi tá de olho pra mim.
- Ah, vai tê caldinho?
- Pra começá vai sê caldinho e torresmo, que dá sustança. E mais nadica de nada.
- Só isso?
- E lamba os beiço.
- Pensei...
- Pensa, não, Zequinha, deixa que eu penso, minhas idéia é melhó que a tua.
- Tem razão, Jaquinha, melhó você prepará o cardápio.
- Tem cardápio, não. É só isso mesmo que eu num vô ficar na cozinha enquanto vocês se diverte.
- Bom, então tá combinado.
Nem dá um risinho e diz:
- Agora é que ela vai começá a combiná.
- Ah, é? Pensei que...
- Já falei pra num pensá, rapaz.
- Zequinha, cala o bico que nem eu.
- Tô calado, tô quetinho.
- Bom, é o seguinte. Tu tentô dá uma de esperto pra cima da gente, mas num vai colá, não.
- Eu só...
- Shi, shi, shi, calado. Vai sê desse jeito: eu faço os caldinho, Nem traz o bloco, tu entra com as bebida, a cumadi ajuda a atendê e a menina da Cidinha vai ficá de "doruma".
- Quê qué isso, "doruma"?
- A Socorro, filha da Cidinha, me ensinô que bar chique tem "doruma", que é aquela moça que fica na porta dizendo quem pode e quem num pode entrar.
- Mas o barzinho aqui é modesto, tem precisão disso não.
- Tu pensa pequeno, né não? Tem que pensá grande, já começá nos trinque.
- Tá bom, é só isso?
- Quem vai ficá no balcão, servindo cerveja, é o meu sobrinho, porque ele é crente, num bebe. Se vocês ficá tomando conta do bar, num vai tê cerveja que chegue, tu e o Nem vai tomá todas.
- E eu faço o que?
- Tu vai dá sociedade pra gente.
- Aí, não, né, Jaqui.
- Aí, sim, Zequinha, porque nós é que vai fazê o trabalho pesado, tu só tá entrando com as bebida e o lugá, o resto é com a gente.
- Eu te avisei, Zequinha, que a Jaqui é parada dura.
- Sô parada dura, não, Nem, num sou é otária que nem tu.
- Meu benzinho, eu só falei que você entende de negoço.
- Vem cá, Jaqui, eu faço o quê na sociedade?
- Tu entra com o dinheiro e nós entra com o trabalho. Depois que começá e, se Deus quiser vai dá certo, a gente divide os lucro meio a meio. Tá combinado?
- E eu vô ficá só olhando?
- Tu qué vida melhó? Só no refresco?
- Então eu vou administrá a grana.
- Comigo do lado, de olho, porque, quem vai ficá na caixa, sou eu.
- Jaqui, eu posso, pelo menos, ficá no salão?
- Pode, tu vai tocar pandeiro na roda de samba que o bloco vai fazê.
- Mas eu num sei tocá nada.
- Tu tem até amanhã pra aprendê.
- Então, deixa vê se eu entendi.
- Num tem dificuldade nenhuma, só burro que num entende.
- Tá, você toma conta de tudo e eu só toco pandeiro.
- E entra com a grana pra iniciar a parada.
- É, foi o que eu entendi.
- Viu? Fácil, né? Agora dá os trocado aí que eu já investi no feijão e nos torresmo.
- Pega aí. Num se preocupa com o troco, não.
- Falô. Vamo abafá, tu vai vê!
Jaqueline dá um beijinho na testa de Nem e vai cuidar da vida.
- Ô Nem, me exprica o quê que aconteceu aqui?
- Tu botô a Jaqui no negoço.
- Num foi isso, não. Tõ achando que ela é que me tirou do negoço.
- Zequinha, num tenta entendê, não. Tô com ela tem mais de vinte ano e até agora eu fico na dúvida, quando ela diz pra mim que eu me dei bem com ela. Sabe cumé? Fico achando que eu num entendi direito, que quem se deu bem foi ela.
- Sabe que eu tô com essa sensação?
- Relaxa, cumpadi, pelo menos tu num vai se preocupá com o trabalho.
- Mas vô morrê na grana.
- Ah, Zequinha, a Jaqui esqueceu de te dizer que a limpeza do ambiente é por tua conta.
- ?
- Tô indo, tenho que prepará a beca pra amanhã. Aproveita pra descansá que a festa tá prometendo. 

segunda-feira, 21 de março de 2011

COM FÉ

A faixa estendida na porta anunciava a inauguração do bar: " Quisila do Capeta, sob nova direção".
Nem parou em frente ao bar do Zequinha e chiou.
- Como é que é, Zequinha? Quisila do Capeta?
- Tu vem, né? É amanhã.
- Rapaz, esse nome é do meu bloco.
- Que, por sinal, eu que batizei, certo?
- E dai? O pertencimento é do bloco.
- Nem, meu querido, vamo juntá o útil ao agradável, sacou?
- Não, num saquei nada. Tô ficando passado, tu tá querendo pegá carona no meu bloco?
- Presta atenção. O bar vai sê o ponto de encontro da rapaziada, teu bloco vai se juntá aqui, manja?
- O que eu tô manjando é que tu qué faturá em cima da gente.
- Senta aí, vamo falá de negóços.
- Tem negóço, não, colega, tu tá querendo me passá a perna.
- Que isso, Nem? Tu me conhece desde que a gente era moleque, tu acha que eu vô mandá mal com um irmão?
- Num sô teu irmão, e tem irmão que estrepa o outro por ganânça.
- Tô de ganânça, não. Se você escutá minha proposta, vai vê que é legal pra todo mundo.
- Tá legal, vou escutá, mas fica sabendo que eu tô p... da vida contigo.
- Esfria, aí, tu vai gostá.
- Manda logo, antes que eu encha os pacová e me mande daqui.
- Olha só, Nem, o bloco foi um sucesso, todo mundo brincou sem nenhum pobrema, saiu até no jornal. As repórter que tava lá adorou tudo, o povo na maior paz, só se divertindo, até o nome elas gostou, só num entendi por que elas falou que "escrever quisila era uma sacada, deliciosamente, debochada".
- Vai vê tu escreveu errado.
- Será? Vai vê é com K. Kisila.
- Pode sê.
- Depois eu vejo no "pai dos burro". Qué uma geladinha pra molhá a palavra?
- Manda, mas a palavra tá contigo. Me exprica aí os parangolé que tu tá tramando.
- É o seguinte. Vamo aproveitá o sucesso do bloco, que eu batizei, e botá o meu sujinho na parada.
- Se vai ficá jogando na cara que tu inventou o nome, pega ele e ...tu sabe onde enfiá, né?
- Calma, cumpadi, a oferta é quente.
- Diz logo, pô!
- Vamo fazê uma parceria, tu entra com o bloco e eu entro com o lugá.
- E o quê que eu ganho com isso?
- Te dou uma participaçãozinha nos lucro e tu ganha um lugá pra ensaiá.
- Que participação é essa?
- Ah, sabia que tu ia ficá interessado.
- Eu trago os pessoal pra sambar aqui, tu usa o nome e aí?
- Aí tu fala pra tua patroa fazê os tira- gosto e eu entro com as bebida.
- A Jaqueline não vai topá.
- Por quê que não?
- Porque ela é que vai tê trabalho pra gente faturá, mané!
- Dá um por fora pra ela.
- Vai dependê do que tu vai me dá.
- Num vô te dá nada, tu vai vendê aqui, no meio do furdunço, é isso que tu vai ganhá.
- Peraí, mas tu vai me dá o capital pra começá a fazê os quitute?
- Pô, vô tê que comparecê?
- Cumé que eu vô comprá os ingrediente?
- Tá legal, vamo começá fazendo um poquinho de cada coisa, umas empadinha, uns pastel, coisinha assim, que tem saída e forra o estômago pra poder entorná a cerveja.
- Falá nisso, essa já secou, manda vê outra.
- Já tá me dando prejú, mas tudo bem, enxuga outra garrafa.
- Zequinha, já que vamo ser sóços...
- É, num é bem sóços, que eu num vô te dá um pedaço do meu modesto barzinho.
- Então, tu tá nesse lero pra que?
- Tu vai faturá nos salgadinho e o bloco vai crescê, aí tu leva uns manguá nas fantasia.
- Vô pensá.
- Pensa logo que a inauguração é amanhã.
- E os salgadinho? Num vai dá tempo de prepará.
- Com  vontade, dá. Aperta a Jaqueline que ela faz, na boa.
- Vô lá, então. Te dô a resposta daqui a poco.
- Tu tem uma horinha pra resolvê.
- E se num resolvê, quê que tu vai fazê? Todo mundo sabe que esse nome é do meu bloco!
- Boto Kisila, e tu num ganha nada.
- Peraí, tu num vai  fazê isso comigo.
- Tu tem uma hora e aí eu mando trocá as letrinha da faixa. E vai passando a grana das breja que tu tomô. Agora é assim. Virei empresário e num sustento mais amigo ingrato.
- Zequinha, ainda nem dei a resposta!
- Mas já tomou as gelada.
- Pensei que era por conta da parceria.
- Pensando morreu um burro.
- Tá legal, tá certo, vamo trabalhá junto.
- Assim é que se fala. Vamo bombá. Bangu vai entrá no mapa dos boteco.
- Vô na tua.
- Vem com fé, colega.
- Agora deixa eu dá a notiça pra Jaque, reza aí pra ela não me matá.
- Vai com fé, colega.
- Só espero que essa história de Quisila num desça pros cascos do demo e ela me dê uns coice.
- São Jorge é mais, cumpadi, São Jorge é mais.



-

quarta-feira, 16 de março de 2011

BOA NOITE, NUNCA MAIS

Seis da manhã.
Mal o despertador toca, já se levanta.
Tudo cronometrado, escova os dentes, prende os cabelos em um rabo de cavalo, passa batom nos lábios, sorri pra si mesma, como que ensaiando o encontro.
Vai à cozinha e prepara seu café, solitário, absolutamente igual, todas as manhãs.
Tempo suficiente para sentar-se na varanda e esperar.
Em poucos minutos, vai vê-lo.
Ele vai parar em frente à ela, sem notá-la.
Vai esperar a carona, como todos os dias, por, mais ou menos, cinco minutos. O carro vai tragar seu corpo e levá-lo para longe dela.
Ela vai voltar aos seus afazeres, arrumar a casa, regar as plantas, lavar roupas e louças, banhar-se, vestir-se e, como um robô, dirigir-se ao trabalho.
Nove horas, ela já está em frente ao computador, fazendo, exatamente, a mesma coisa, chova ou faça sol.
Revisa os relatórios, corrige o que tiver que corrigir, anexa a pasta, despacha. Religiosamente igual, ano após ano.
Uma hora da tarde, levanta-se e vai à copa. Almoça a salada que trouxe de casa, sequer lembra o sabor que tem, bebe um suco de caixinha que comprou na máquina do refeitório. Quando acaba a refeição, limpa a mesa com um guardanapo, joga o lixo fora, lava seus talheres e, antes de voltar à sua mesa de trabalho, passa no banheiro, arruma os cabelos, escova os dentes, passa batom e sorri para si.
Trabalha o resto do dia pensando na volta, relembrando os passos que, invariavelmente, dará.
Cinco horas da tarde, pega o carro no estacionamento e retorna pelo caminho de sempre. Deve levar entre quarenta, quarenta e cinco minutos para chegar em casa.
Coloca o carro na vaga, pega o elevador, entra em casa.
Hoje, vai tentar aproximar-se, casualmente, procurar um primeiro contato.
Troca as roupas de trabalho pela de ginástica, calça os tênis, refaz os cabelos e retoca o batom, sorri frente ao espelho, coloca um perfume suave e sai para esperá-lo, fingindo fazer uma caminhada normal.
Seis e meia, ele deve estar chegando, trazido pelo mesmo carro que o levou pela manhã.
Vai e volta milhões de vezes, pela mesma calçada, faz e refaz o mesmo trajeto. A ansiedade entrecorta o fôlego, a emoção faz o coração palpitar na garganta, o medo vira suor frio.
Sete horas e o carro sequer despontou na esquina, as pernas tremem de aflição.
Será que teria acontecido alguma coisa com ele? Passou mal no escritório? Estaria em um pronto socorro? Ou, pior, teria sofrido um acidente na volta pra casa? Ou na ida? Ela não saberia em que momento teria sido, não sabia como ter notícias. Sabia onde ele morava, conseguira saber seu nome, mas a quem perguntaria se ele estava bem?
A aflição da espera pressionava seu peito, logo hoje que estava decidida a abordá-lo.
Sentou-se no banco e começou a desmoronar, comia o lábio, apertava as mãos e rezava.
Pedia a Deus que ele estivesse bem, que nada tivesse acontecido, que fosse só um atraso, ou um imprevisto qualquer, que fizera com que ele tardasse. Esperou, em lágrimas, até às nove horas da noite e ele não veio.
Voltou à sua solidão, que agora pesava toneladas, com a incerteza do que poderia ter ocorrido.
Adormeceu, encolhida na varanda, acordando, sobressaltada, a cada carro que parava.
No dia seguinte, continuou sentada na varanda, desarrumada, sem café, sem batom, sem sorriso.
E ele nunca mais veio.
Ela nunca soube o que aconteceu à ele, nunca saberia o que aconteceria à eles, se ela não tivesse esperado tanto tempo pra ter coragem de dizer: Boa noite.
Nunca mais passou batom, nunca mais sorriu frente ao espelho.

terça-feira, 15 de março de 2011

ESPECTROS

Sou alérgica a carnaval. Não consigo me imaginar, enlouquecida, no meio da multidão.
Não me sinto confortável entre dez pessoas, entre milhares entro em pânico.
Mesmo assim, resolvi conferir, por insistência de minhas filhas, o mais novo bloco da cidade: Sargento Pimenta e a Banda dos Corações Solitários. Beatles, em andamento diferente.
Achei que seria interessante e divertido pra quem tem mais de 50 anos. E lá fui eu com Lady Madonna (Tati) e Lovely Rita (Nana).
Fizemos um planejamento estratégico, deixaríamos o carro no Jardim Botânico e tomaríamos um táxi pra Botafogo, local da concentração. A primeira etapa foi vencida com êxito, conseguimos estacionar com facilidade. A segunda foi mais complicada, o trânsito pra Botafogo estava, literalmente, parado. Resolvemos ir caminhando, longa distância, mas estávamos cheias de gás, sabe como é, ida é sempre uma festa. Ultrapassamos todos os ônibus e táxis que passaram por nós.
A medida que nos aproximávamos do bloco, a multidão começou a crescer e espremer.
Encontramos pessoas inesperadas e as que esperávamos encontrar não vimos, até agora.
Comecei a ficar tensa com o empurra-empurra e resolvemos nos afastar, um pouco, da panela de pressão.
Como não sou, propriamente, carnavalesca, não gosto de muvuca, de gente bêbada e suada, tomei consciência da péssima escolha que fiz.
Se, pra quem gosta, já é um inferno, pra mim era um suplício.
Um desses inesperados encontros, deu-se com Tati. Um mendigo, barbado, sujo, cabeludo e rasgado, postou-se frente à ela e, insistentemente, forçava um papo. Ela tentava desvencilhar-se, ele não lhe dava passagem, as pessoas em volta paravam de pular pra olhar a cena que aquele doido fazia. Resolvi dar uma ajuda à ela, falei pra ele se afastar, o mendigo disse:-"Quando te conheci você não era assim, não. Só porque virei mendigo, me vira a cara?", e sorriu. Mostrou os dentes mais brancos que já vi na vida, um fio de pérolas! Era um amigo dela, querido e irreconhecível. Reparamos que ele usava Armani, mendigo cheiroso!  Se abraçaram às gargalhadas e o povo em volta ficou boquiaberto, sem entender o que estava acontecendo.
Comecei a perceber o espírito da festa, pra mim. Eu estava ali pra observar, não pra participar. Não adiantava forçar a minha natureza, sou introspectiva, não sou uma explosão de alegria, sou mais um sorriso que uma gargalhada. E me vi interagindo com "amigos de infância". As fantasias eram delirantes, milhões de homens vestidos de "Cisne Negro", anjinhos, patinhos negros (debochando dos cisnes), meninas de "Tropa de Elite", tinha uma Pacificadora, tinha Loura Gelada, dentro de uma caixa imitando isopor, e um maluco de tanga, pena e apito, sessentão relembrando "Índio quer apito". Aquele era da minha geração, me enxergou e, ai meu Deus, me reconheceu. Aproximou-se e me convidou pra tomar uma cerveja com ele (embora ele já tivesse tomado todas).
Recusei, educadamente. Ele me olhou, fixamente, e disse:-"Quando a gente vai se ver?". Respondi que estávamos nos vendo. "Já que não vai ser cerveja, que tal café?". Disse que, naquele momento, não ia dar pois estava acompanhada. "Então, promete que vai me ligar e vai se encontrar comigo". Prometo, falei. "Promete que não vai esquecer? Eu vou esperar". Pode esperar, vou ligar, disse, tentando despachar o sujeito. "Vou te esperar a vida toda, você nunca saiu da minha cabeça e do meu coração, desfiz dois casamentos porque não era com você que eu estava casado, procurava nelas, coitadas, e não te encontrava. Elas não eram você, Ester!"
Ester?! Ester?! Já estava me achando a Rainha dos Corações Solitários e ele tinha a certeza de estar vendo o espectro do amor perdido.
Eu sabia que não conhecia aquela pessoa, eu era a única sóbria naquele bairro todo, suficientemente lúcida pra vasculhar a memória e não ter o registro daquele rosto, voz, nada. Achei que estava participando de uma bobagem de bêbado em um dia de carnaval, de uma brincadeira inconsequente, mas para aquele sessentão, eu representava a história de um amor marcante e mal resolvido. Ele pegou minha mão, deu um beijo longo e, trôpego, me olhou de novo e disse:-"Muito obrigado".
Voltou pra multidão onde podia se perder, só.
Fiquei me perguntando o por que de me agradecer, será que ele sabia que eu não era Ester, que eu fingi ser ela (sem saber), pra que ele pudesse aliviar, um pouquinho, o peso dessa falta?
Nunca vou saber, não importa, é só mais um na banda do Sargento Pimenta, no clube dos amores desapontados.
Minhas filhas resolveram esticar o entusiasmo em outras plagas, eu resolvi fazer a maratona de volta ao carro.
Durante a longa caminhada fui matutando sobre a relação carnaval-ilusão, carnaval-faz de conta, carnaval-fuga, carnaval-terapia, carnaval-catarse. 
Aquele ser perdido em um passado frustrado, me fez perceber quanta solidão uma pessoa pode sentir no meio da multidão, quanta saudade pode carregar na vida e quantas soluções tenta, buscando curar uma ferida aberta.
No carnaval ele podia pretender que encontrava sua Ester em muitas mulheres mas, no fundo, sabia que a que ele queria não estava lá. Por isso inventava, ou via, em outras, a possibilidade de encontrar aquela que ele buscava.
Ele deveria ser convidado pra ser padrinho da banda que levava sua história e de muitos que, como ele, são "Sargento Pimenta e a Banda dos Corações Solitários" .
Voltei pra casa com a certeza de que carnaval, definitivamente, não é a minha praia.

sexta-feira, 4 de março de 2011

É HOJE!

A farra vai começar! Sexta feira de carnaval!
"Carnaval, desengano, deixei a dor em casa me esperando."
Nesses dias, somos livres, eufóricos, bêbados sem donos.
A fantasia encobre quem somos. Seremos, durante esses dias, quem inventarmos ser.
Seremos palhaços, diabinhos, tiroleses, mendigos, reis, seremos outros.
Carnaval é dizer adeus à nossa máscara, ao figurino, ao cotidiano.
Dizer adeus ao que nos segura o vôo, às inibições, aos limites.
Adeus à racionalidade, adeus aos freios, adeus.
Durante o carnaval tudo é possível.
"Vou beijar-te, agora, não me leve a mal, hoje é carnaval".
Amores acontecem, nem que durem quatro dias, uma noite, um minuto ou uma vida.
Soltamos as amarras, crianças grandes que somos e reprimimos, nos travestimos e representamos nossos sonhos, o que gostaríamos de ser.
Carnaval é permissão pra loucura aflorar e desembestar.
Vamos às ruas e aos bailes procurando o proibido, esquecemos nossas resistências morais, derrubamos os muros que nos aprisionam durante o resto do ano.
Uma grande confraternização de presos, libertos de convenções e classes.
Rico vira figurante em escola de samba. Pobre vira destaque, vira Rei, se cobre de brilhos e alegria.
Homem vira mulher, mulher vira homem, em uma permitida troca de papéis.
Corpos se exibem, se oferecem, sem culpa, sem identidade.
"É hoje que eu vou me acabar."
Viveremos esses dias como se não houvesse amanhã. Dormiremos pouco, beberemos muito, dançaremos sempre e cantaremos músicas e pessoas. O que cair na rede, é peixe.
Na festa pagã que começa hoje, temos licença pra fazermos todas as besteiras que evitamos fazer quando estamos sem a proteção do carnaval. Beijar bocas improváveis, transar com desconhecidos que, fora do carnaval, jamais nos atrairiam, fazer amizade com foliões próximos, brindar à alegria de ser anônimo, de ser mais um nessa multidão desvairada.
"É ou não é, piada de salão?"
Seremos despudorados, desbocados, desequilibrados, seremos fingidos, volúveis, fantasmas que desaparecerão em breve.
Perderemos a memória, de propósito, por excesso de bebida ou por vergonha dos excessos, mas será só uma mentirinha de carnaval. Não haverá cobranças  porque, afinal. a doidice é geral, o hospício é a rua e os loucos somos todos nós.
Seremos "Maria Escandalosa", "Pirata da perna de pau", esperto Arlequim, ingênua Colombina,"Mulata Bossa Nova", seremos todas as músicas e todas as letras, seremos, samba, marcha, frevo, maracatu, marcha rancho, seremos norte e sul, seremos o mundo com odaliscas, beduínos, tiroleses, seremos caricatos, exagerados, seremos o que a loucura quiser que sejamos, padre, freira, dançarina de can can, prostituta.
Carnaval é um encontro coletivo, um único objetivo mobiliza os foliões, divertir-se até a festa acabar.
Alguns interpretam erradamente o conceito da folia e desrespeitam o ambiente, são grosseiros e vulgares, acham que não podem ser repelidos em suas investidas, ofendem e agridem. Para esses pretensos foliões (porque fogem ao espírito momesco), o carnaval é a oportunidade de serem quem realmente são, arremedo de gente, boçais, intolerantes e egocêntricos. Se escondem na fantasia achando que não serão reconhecidos. Infelizmente, essas pessoas existem e fazem tudo pra impor suas, indesejáveis, presenças.
Cabe a nós, verdadeiros adoradores dessa grande festa, manter a calma e a alegria, mandando pra p?#@ que P*$+u esses Exus!
Evoé, macacada!

quinta-feira, 3 de março de 2011

GRANDE TOM!

Ontem, assisti ao filme "Direito de amar", de Tom Ford.
Tardiamente, confesso. Resistia à ideia de um designer se atrever a roteirizar, dirigir e produzir um longa metragem.
Preconceito, desconfiança, antipatia, talvez, por terem incensado uma pessoa famosa do mundo da moda. Errei feio!
Não que o filme seja uma obra prima, não é. Mas é bom, um pouco lento pro meu gosto, mas esse é o tempo da personagem, talvez do próprio Tom Ford.
Gosto de filmes que me façam pensar sobre o que vi, avaliar a mensagem ou procurá-la.
O filme fala sobre perda, no caso, de um amor. Poderia ser qualquer perda, a vida é feita delas.
Mas fala, principalmente, do impacto que elas nos causam.
Da tentativa de assimilar ou negar, se entregar ou reagir, parar ou continuar.
Dualidade é a base da existência. Isso, aquilo, claro, escuro, sim, não, início, fim.
Partindo da premissa que Ford coloca " o passado não me interessa, o presente me entedia, o futuro sempre é a morte", em qual momento ele situa o filme? Nos três estágios. Esse ir e vir permeia o filme, na tentativa de definir o futuro, comandar o destino, explicar o possível desfecho. O filme mistura flashbacks, narrativa no presente e termina com o futuro chegando e, como sempre acontece, surpreendendo.
Mas não é um filme mórbido, sequer pesado, apesar do tema.
O tempo todo a personagem se prepara, detalhadamente, para o suicídio, para o que ela considera ser o alívio de sua dor. E vai se despedindo da vida sem emoções, sem sofrimento.
Mas a vida, espertamente, vai colocando desafios à sua frente, vai testando a determinação desse homem, aparentemente, decidido. A amiga, desesperadamente carente, que aceita qualquer coisa pra escapar da solidão, o garoto de programa que se oferece , o aluno sedutor e menor de idade que tenta desviá-lo ou aproximá-lo da ruína. E a falta do ser amado, que faz com que ele caminhe na borda do precipício.
E é aí que aparece a construção que esse homem fez de si. Em uma única cena, uma única fala, a personagem entende quem é. Quando o aluno diz que se aproximou dele porque ele é mais velho, portanto mais experiente, ele responde:-"Experiência não é o quanto você vive, nem o que acontece com você, experiência é o que você faz com o acontecido". E faz-se a luz ! Não importava o tamanho da dor que ele carregava, o amor interrompido, a tentação de corpos jovens, alugados ou oferecidos, nada disso o levava a ser o que não construiu em si. Teve todas as chances de se ferir e, assim, se dar motivos para se destruir, real e metafóricamente. Mas o que ele fez com os acontecimentos da vida? Aprendeu a seguir em frente, sem se machucar a ponto de se arrepender, sem precisar de subterfúgios para legitimar erros. Não era, definitivamente, auto destrutivo. Depressão não era sinônimo de morte. Sua tristeza era palpável e todas as possibilidades que teve de se matar moralmente, ele afastou com serenidade, entendeu que a solidão não é uma sentença ou uma licença pra fugir de seus problemas. Lidou com a experiência que se permitiu ter, aprendeu com sensibilidade a se desviar do fácil, da tolice, do prazer momentâneo, hedonista e indulgente.
Perder um grande amor (e não se perde só para a morte, quantos perdemos em vida?) não era  desculpa para desistir de si. Tinha todo o direito de estar profundamente triste mas, também, tinha a obrigação de viver o luto. Quando resolveu toda a sua guerra interior, a morte o surpreende e o liberta, sem que ele fosse o agente principal, mas mostrando a ele, e a nós que assistimos, que não há coerência em planejar a vida ou a morte, somos pegos de surpresa por alguma coisa ou alguém que não combinou conosco o tempo que precisamos pra viver e aprender.
Quantos velhos tolos e inexperientes andam por aí? E quantos jovens sábios? Prova que idade não dá diploma!
O que fazem conosco está fora do nosso controle, o que fazemos de nós é que deveria importar.
A vida se oferece, de graça, pra que aproveitemos esse tempo, que será sempre curto pra terminarmos tudo que queremos fazer. Se oferece pra quem quer tirar dela ensinamentos, lições, oportunidades, mesmo na tragédia, no infortúnio. Nada se desperdiça se não desviarmos a atenção do futuro de todos nós.
Por isso gostei do filme, porque, também ele, me ensinou que o presente, mesmo que seja tedioso, problemático, triste, abre sempre uma janela para aprendermos alguma coisa e usá-la a nosso favor.
Basta enxergar e não se deixar toldar, caminhando para o mais fácil, que é sentir pena de si mesmo.
Consciência é irmã da experiência. Sempre preferi a consciência à felicidade, porque só me entendo feliz se tenho consciência do momento de felicidade que vivo. E minha experiência (quanta arrogância!) é a memória da minha vida, do que ando fazendo dela. Acho que aprendi, um pouco.
E aprendi com Tom Ford que o preconceito de recusar o inesperado, o novo, o desconhecido, quase me fez perder uma experiência muito gratificante.
Grande Tom!

terça-feira, 1 de março de 2011

BATISMO

Bangu. 180° a sombra. Vapor subindo. Cabeça quente.
Nem e Zequinha do Bar jogam dominó e conversa fora.
- Colega, tá dando pra fritá ovo na testa.
- E eu num sei?
- Quanto tá fazendo, uns 45°?
- Por aí.
- Ainda tenho que pensá na fantasia do bloco.
- Tu vai mesmo fundá um bloco?
- Já tá fundado, só precisa de nome.
- Tem que sê fantasia leve, rapaz, se não o povo vai morrê no calçadão.
- Que calçadão, Zequinha. Vou levá o bloco pra outras parada. Tô querendo ir pra perto do mar. Assim, quando o corpo esquentá, o marzão refresca.
- Pediu licença na prefeitura?
- Num sei pra onde vou levá, cumé que vou pedir licença? Vou na marra.
- Vai dá pobrema!
- Que pobrema?
- A polícia vai mandá circulá, nem vai saí da concentração.
- A gente finge que desconcentra e vai mais pra frente.
- Olha lá, hem? Tu pode ir em cana.
- Cana, nada. Jogo um lero de carnaval e coisa e tal, digo que é um bloquinho de pobre e neguinho libera.
- Tu que sabe, né?
- Teu jogo tá moleza, tu tem pouca pedra na mão.
- Sorte é sorte, que que eu vou fazê?
- Vou morrê com esse catatau na mão.
- O bloco sai quando?
- Tô querendo no sábado porque domingo vou pro viaduto, vê minha escola passá.
- Tá encima do lance, Nem.
- Pois é.
- E tu num tem fantasia e nem nome.
- Mas, também, negão, com essa lua na cabeça, num dá pra pensá direito.
- Fora os mé que tu entorna.
- O mé é pra esfriá a estufa, sem mé o sangue ferve.
- Aí, bota fantasia de nenem, fraldinha e mamadeira de cana.
- É uma, Zequinha. Fantasia fresquinha e leitinho pra mantê a criança hidratada.
- E as mina vão de babá. Sainha, top e touquinha.
- Gostei. Pro calor que tá fazendo, é uma boa. 
- Me avisa com antecedença, vou levá uns isopor no carrinho e faturo umas breja.
- Só se tu perdê uma mão de dominó. Tu só ganha de mim!
- Nem, só perco se não jogá.
- Tá legal, te aviso com antecedença.
- Cara, mas tá muito f#*a esse calor, inferno perde de Bangu!
- Bangu é o verdadeiro inferno do Rio.
- Que música a banda vai tocá?
- Tava pensando em fazê um repertório só de música que fala de calor.
- Manero, legal.
- Então, vou botá "que tudo mais vá pro inferno" do Rei, Alá lá ô, Pode vir quente que eu tô fervendo, essas parada, falá da quentura, que é a realidade da comunidade.
- Saquei, vai protestá, né?
- Também, mas eu vou é me esbaldá.
- O pessoal tá bem animado.
- E eu num sei?
- Tá todo mundo na maior pilha.
- O nome é que tá pegando.
- É, tá mais que na hora de tu bolá o nome.
- Tô achando que vou copiá o nome de um bloco de bacana.
- Nem vem com Banda de Bangu!
- Que isso, rapaz, tu acha que vou copiá Banda de Ipanema? Neguinho aqui é macho!
- Nem todos, né?
- Mas não liberam a franga.
- É, fica tudo na moita.
- Não, tem que ser um nome que case com o lugá que a gente vive e com as música que nós vai tocá.
- Vai falando aí os nome dos bloco da zona sul.
- Num é só zona sul que tem bloco de bacana, não. Tem o "Imprensa que eu gamo".
- Esse nome é du car*#*#o!
- Num é? Tem o "Simpatia é quase amor", tem "Carmelitas", tem "Gigantes da Lira", tem "Suvaco de Cristo", tem...
- Achei, Nem, achei o nome do bloco do inferno.
- Bloco do Inferno?
- Não, cumpadi, " Quisila do Capeta"!
- Hem?
- Num tem "Suvaco de Cristo"? Então, Bangu tem "Quisila do Capeta"! O  suvaco do demo é a "Quisila do Capeta"!
- Genial, Zequinha, tá batizado!
- Agora, joga Nem, antes que as pedra derrete.