terça-feira, 26 de abril de 2011

BODE

Agora que a mágica se revelou truque.
Agora que o véu que encobria meus olhos caiu e a máscara que cobria seu rosto foi arrancada.
Agora que me encontro comigo e me despeço de você.
Agora que sei o que faço comigo, te absolvo.
Não encontro desculpa por mentir a mim mesma.
Acontece que não sei por que me permito a paixão.
Ela é um vício do qual não me curo por burrice, adição, necessidade.
Racionalizo e entendo que o erro sempre parte de mim.
Preciso aprender a evitar a armadilha que armo pra mim. Armo e caio.
Paixão é química perigosa, inflamável, destruidora.
Consome e arrasa, deixa um rastro de cinzas.
Deveria ser proibida por decreto e, aos que burlassem a lei, aplicada a pena máxima: imunidade permanente.
Não creio que me apaixono por alguém, me apaixono pela sensação que ela me dá.
É uma droga poderosa que me faz perder o juízo, me arrebata, me desloca do real, me aniquila.
Mas, enquanto dura o efeito, me dá a sensação de poder, de euforia, de descontrole.
Me faz acreditar que tudo é possível, em nome dela.
Você não era a pessoa que, em minha ilusão, eu queria que fosse. Você foi, simplesmente, você.
O objeto da minha paixão.
Não quis reparar no engano, investi no erro que busco em qualquer um. Mergulhei em águas conhecidas e turbulentas. Sabendo que, ou me afogaria, ou morreria na praia.
Mas o vício falou mais alto.
Me atirei do penhasco sabendo que não encontraria nada diferente.
Sabia que o que me movia era sentir, novamente, aquela sensação que parece libertadora, no início.
Dura pouco e machuca muito.
Paixão não implica no outro, é como me sinto que interessa. É a falta de ar da expectativa do encontro, é a motivação pra dormir tarde e acordar cedo, é o sorriso permanente, é o caminhar sem tocar o chão, é isso que me faz falta. Não é você!
Poderia ser qualquer pessoa, poderia nem se relacionar comigo, poderia me ignorar, me evitar, me rejeitar e, ainda assim, me motivar.
Essa é a engrenagem da paixão, correspondida ou não.
Você foi o instrumento da vez, a desculpa que me dei pra não reconhecer meu vício.
Não fosse por ele, você seria, no máximo, um amigo. Não tínhamos afinidades, tínhamos química.
Não precisava me apaixonar, bastava resolver a eletricidade com uma descarga momentânea.
Mas a vontade de reter o choque me arrastou pro olho do furacão. Queria adrenalina, queria taquicardia, queria adoecer, ficar de cama, na cama, queria mais química e mais doente ficava.
Por isso, te isento de culpa. Em momento algum você se colocou disponível, ao contrário, se mostrava arredio e desconfiado. Entendendo, talvez, ser a flecha que eu precisava pra atingir meu alvo.
Acho que nem estávamos em sintonia. O que eu sentia dizia respeito a mim, não a você.
O que você sentia, não sei. Porque só me interessaria se fosse na mesma intensidade da minha voracidade.
Não dava pra assumir tamanha responsabilidade. Perder os freios não é pra qualquer um, é preciso ser louco pra perder o controle com uma pessoa tão alucinada.
Você não é um adicto, não compartilha agulhas que espetam o coração e o fazem sangrar.
Sua doença é outra. É controlado demais pra se permitir entrar na escuridão dos sentidos e ser tragado por eles.
Viciados, como eu, têm sua turma.
Temos nossas marcas escondidas, não exibimos nos braços ou nas rugas profundas do rosto.
Ter consciência da doença não quer dizer que posso confrontá-la, quer dizer que sei que ela existe.
Mas quero acreditar que vou conseguir aprender a lidar com ela.
O "bode" da paixão não difere dos outros "bodes", só é mais aceito e provoca compaixão. Forma-se uma rede de solidariedade que só faz aumentar a adição. Torna-se um outro vício que depende do primeiro. Fecha-se o cerco.
Por isso não quero colo, não quero facilitar a recaída.
Vou afundar até tocar a dor que se esconde na água escura e procurar subir à tona, tentar me salvar de mim mesma.
E entender que vou ficar em processo de cura todos os dias.
Entender que a abstinência dói. Terei que negar a alucinação, evitar as vozes que me dirão pra tentar mais uma vez, me proteger do que me magoa.
Deixar, de vez, o vício.
Só me amando poderei me aceitar e amar outro, sem paixão, sem cegueira.
Permitindo que me amem, a cura será, espero, possível.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

ANTES QUE EU ESQUEÇA

Ando incomodada com algumas lembranças indesejadas.
Resolvo encarar uma boa faxina interna.
Tarefa hercúlea, mexer e remexer o baú da memória.
Passado é aquele incoveniente que, de vez em quando, bate à sua porta.
Todo passado assombra, exige solução. Guardar ou atirar às traças?
O que não tem solução, solucionado está!
Não devo me prender ao que não depende de mim, ou que não depende só de mim.
Deixo ir, escorrer, esse tempo que retive, por não saber o que fazer dele.
Quanto menor a bagagem, mais leve a vida.
Bagagem extra, aquela que carrego esperando, um dia, resolver, essa vai desaparecer.
Ela só serviu pra criar mofo e dificultar a respiração.
Mágoas, amores mal resolvidos, pendências que carreguei pela vida, só a mim fizeram mal.
Retiro do quarto de guardados, direto pra lixeira. São despejados e esse espaço interno será limpo e arejado.
Não pensarei se vale a pena preservar, não serei um museu dos horrores, exibindo em minhas paredes as cicatrizes, as dores, o sangue que perdi. Essas batalhas já foram travadas e se não ganhei, paciência.
Se a memória pode selecionar, vou fazê-lo a meu favor. Incomodou? Desapontou? Feriu? Lixo!
Precisei de muitos anos pra, finalmente, entender que ninguém é culpado pelas minhas inseguranças, meus temores, meus amores frustrados, minhas loucuras.
Se guardei tudo isso, cabe a mim eliminar, desinfetar o porão e não visitar, nunca mais, o lugar que eles habitavam, aprender a desviar do que me faz mal, não permitir que novos visitantes preencham, novamente, o que levei tempo pra expulsar.
Chateação guardada é página virada!
Diariamente, sem dúvida, surgirão probleminhas, a eles darei a dimensão exata e resolução imediata.
Os que forem, realmente, problemas, tentarei resolver da forma mais rápida e indolor possível.
Alguns levarão mais tempo de digestão, talvez precise me focar neles um pouco mais que o desejável, mas não serão deixados em banho maria, não tenho mais tempo pra ruminações. Problema velho, não resolvido, mal resolvido ou meio resolvido, fora! Assimilado! Check!
Feito isso, darei espaço ao prazer. Usarei a parte boa da minha história pra ser lembrada e, assim, oxigenar o ambiente mental. Essa é a parte da faxina em que vou espanar o pó, lavar as porcelanas, varrer o chão e lustrar os metais, fazer brilhar minha melhor e mais feliz memória.
Lembrar das coisa boas que a vida me deu e das que conquistei.
Lembrar dos amigos de sempre e da vida que, em algum momento, compartilhamos.
Lembrar das pessoas que me ajudaram a ver melhor o caminho por onde andei.
Lembrar das pequenas coisas que deram sentido a minha trajetória.
Lembrar das escolhas que fiz e não lamentei. Embora algumas tenham sido erradas, elas fizeram de mim o que sou.
Lembrar que a vida me deu mais alegrias que tristezas.
Lembrar de esquecer as dores.
Lembrar dos momentos em que Deus se manifestou em meu mundo. Particularmente, no nascimento de minhas filhas.
Lembrar que sou merecedora e jamais devedora.
Lembrar que minha felicidade depende de mim e de como atuo diante dos abalos emocionais.
Lembrar que, em uma guerra, sempre há um vencedor, acreditar que, se fui vencida, não foi uma batalha perdida. Talvez aquela não fosse minha guerra particular.
E lembrar que, a vida sendo uma só, tem que ser vivida de verdade, com verdade e, principalmente, com prazer, amor, gratidão e bondade.
Lembrar que, lambidas as feridas, curado o mal, afastada a doença, tenho que ser uma pessoa melhor.
Pelo menos, até que me esqueça de lembrar!

sábado, 16 de abril de 2011

BIRINIGHT

Dia raiando, tênis chamando.
Vou fazer minha obrigação matinal, embora, todo santo dia, acorde dizendo que vou "matar" a caminhada.
Com preguiça e culpa por pensar, sempre, em adiar o que é bom pra saúde, visto o uniforme oficial e surrado da malhação.
Lá vou eu, ajudando o meu dia a nascer.
Depois de cumprida a tarefa, paro, como sempre, na Reserva. Sento no banco que já começa a tomar a forma de minha anatomia.
Agora, me sentindo endorfinada, respiro.
- Smirnoff, Orloff, peguem a bolinha!
Essa Reserva é um espanto! De onde menos se espera, vem novidade.
- Oh, bom dia, dona Angela, vim dar um passeio com minhas meninas.
- Bom dia, Pedro.
Sempre que o vejo, lembro da música do Chico. Pedreiro, também, esse Pedro.
Trabalha na obra em progresso que é esse condomínio.
Vem acompanhado de um amigo, que me apresenta.
- Esse aqui é o Osvando, mas chamam de Alex, porque ele não gosta do nome.
- Não gosto, não, senhora.
- Por que? O que há de errado em se chamar Osvando?
- É que pobre tem mania de juntar nome de pai com o da mãe. Sai, sempre, nome feio.
- O seu é um palavrão, debocha Pedro.
- Quais são os nomes de seus pais?
- É Osvanir e Vanda. Pensaram em Vandosvani, acabaram botando Osvando.
- Menos mal, né, dona Angela?
- Não tem nada errado no seu nome.
- É, mas não gosto, não. Prefiro Alex.
Não perguntei o por que da preferência, fiquei com receio da explicação.
- Você trabalha na obra?
- Trabalho, sou ladrilheiro.
Smirnoff (ou seria Orloff ?), vem fuçar meus tênis, talvez sentindo o cheiro do meu cachorro.
- Sai daí, menina, deixa a madame em paz.
- Ela não me incomoda, Pedro.
- É que tem gente que não gosta.
- Sou cachorreira, não se preocupe. E elas são mansinhas. Que bom que você cuida delas com carinho, isso é raro, hoje em dia.
- Só podia botar uns nominhos mais bacanas, a senhora não acha?
- Agora deu pra implicar com tudo que é nome, Alex?
- Implico com nome de pobre.
- Que nome de pobre? Qual é o pobre que tu conhece que tem o nome das  minhas cachorrinhas?
- Graças a Deus, nenhum. Já imaginou, gente com esses nomes? E não são nomes nem de mulher, nem de homem.
- Por que?
- Tudo termina em off, ninguém se chama Rodrigoff ou Marlenoff.
- Mas teu apelido  termina em ex. Alex.
- Mas o nome, mesmo, termina em o. Macho.
- Não quer dizer nada.
- Rapaz, mulher termina em a e homem em o.
- Vou dizer um nome e tu me diz se é homem ou mulher. Darcy.
- Acho que é homem.
- Errado, mulher. Minha tia Darcy.
- É, seu Osv... Alex, nome pode confundir, digo, metendo o nariz sem ser chamada.
- Quero exemplos, Pedro.
- Sei lá, Lair, pode servir pros dois.
- Tive um médico chamado Sirley. Na primeira consulta, levei um susto, a porta do consultório abriu e eu não esperava um homem. Meu outro médico, muito querido, se chama Nadir.
- Nadir, madame? E é homem, mesmo?
- Claro que é! E dos mais interessantes que conheço.
- Mas que é esquisito, é. A senhora tem que concordar.
- Alex, vamos deixar dona Angela em paz. Tamos tomando o tempo dela.
- Aí, desculpe, não queria incomodar.
- Não, Alex, vocês não estão incomodando.
- Mas a gente tem que voltar pro batente. Só vim dar uma voltinha com elas. Bicho sente falta do passeio.
- É verdade, igual a nós.
- Só que a gente se leva, né? Eles precisam da gente.
- Pedro?
- Senhora?
- Fiquei curiosa, por que Smirnoff e Orloff?
- É, Pedro, por que tu não botou nome estrangeiro?
- Primeiro quero dizer, Alex, que elas têm nome de mulher, sim.
- Ah, é?
- É. Elas têm nome de vodca, a vodca, não é o vodca.
- Por que não botou vodca estrangeira, tipo, Absoluta e Vigorosa? ( Acho que ele quis dizer Absolut e Wyborowa).
- Porque não sou metido a besta que nem você. Depois, Absoluta e Vigorosa é coisa de travesti.
- Mas, afinal, por que, Pedro?
- Porque, dona Angela, minhas meninas são vira latas.
- De luxo, né, Pedro? Devia botar os nomes de "Caninha e Pinga".
- Não adianta, OSVANDO, tu implica com qualquer nome. Vam'bora.
- Prazer, madame, se precisar dos meus serviços, é só  falar com o Pedro.
- Tenham um bom dia, a gente se vê.
- Com certeza, madame. Bom dia pra senhora.
- Vamos Smirnoff, chama a Orloff!
E voltam ao trabalho, seguidos por suas biritas.
Agora, me digam, como vou poder ouvir essas bebidas serem pedidas, sem ter um acesso de riso?

sexta-feira, 15 de abril de 2011

TESTAMENTO

Quando eu morrer, por favor, sejam breve nas despedidas, lembrem que já não estarei lá.
Quando esse momento chegar, estarei longe e inacessível, portanto nada de lágrimas.
Sei que é difícil dar adeus, não ter mais por perto alguém que se gosta, já passei por essa experiência.
Por ter vivido isso, sei que a dor é inevitável, mas a gente escolhe: se lamentar ou deixar a angústia escorrer.
Não me exponham, odeio visitação pública, fora que vou estar em meu pior momento. Não façam isso comigo!
Ao me vestirem, nada de melhor roupa, elas vão virar fumaça, melhor dar a quem precisa.
Podem botar uma roupinha velha, só me cubram as pernas, nunca gostei delas!
Flores, nem pensar! Não gosto do cheiro em vida, então, flores, nem morta!
Talvez, um ramo de amor perfeito nas mãos, se acharem. Mas não é essencial.
Prefiro que me cubram com fotos, qualquer foto de pessoas e lugares que amo, assim vão subir aos céus comigo e, como terei a eternidade pela frente, gostaria de ter imagens queridas me acompanhando nessa chatice. Sei que serão queimadas mas vou reter em algum lugar, sei lá onde.
No lugar de lamentações, música. Uma trilha sonora com as músicas que gosto, que pontuaram minha vida.
Mas, por obséquio, volume baixo, não suporto música alta, me atordoa e, embora vá estar surdinha, a ocasião não vai pedir. Portanto, boa educação nessa hora. Sejam moderados, também, no som.
Tem algumas que eu faço questão: My Way, Hotel California, In my life, The Long and Winding Road, Here Comes the Sun, Here There and  Everywhere, outras, que achem que têm a minha cara, podem escolher. Mas não esqueçam de rock, e, por favor, nada das esganiçadas, tipo, Mariah Carey, Celine Dion, nada de voz espremida, me irrita.
Bebam e dancem, por mim, celebrem, lembrando que a gente vive pra ter esse encontro, nada demais, c'est la vie!
Se alguém esboçar chorar, contem uma piada e riam, gargalhem, faz bem pra alma e ameniza a, provável, tristeza. O som da felicidade é fundamental pra quem parte.
Encham o espaço de boas lembranças, elas tiram o peso do luto.
Quando conversarem, escolham temas amenos, eles ajudam o tempo a passar mais levemente.
Coroas de flores, tirem do recinto! Não vou ver e nem levar comigo. Só prestam pra, depois, os floristas revenderem. Imaginem, flores reaproveitadas de defunto desconhecido! Não dou intimidade a quem não conheço.
Maquiagem, meus amados, sequer blush. Estando mortinha da silva, vai servir pra que? Não vou estar a fim de impressionar ninguém, deixem a pele descansar em paz!
Quando virem aquela carinha de pesar em alguém, saiam de fininho e não deixem o dito cujo se aproximar, faz mal pra saúde, coisa que vocês têm e devem preservar.
Quanto as orações, imploro, de joelhos, não permitam a entrada de quem queira encomendar meu corpo ou alma. Encomendar pra que? Deus já recebeu o pacote e, aqui na terra, quem vai encomendar o que não vai receber? Rezem, se quiserem, mentalmente.
Depressão, não! Nunca fui deprimida em vida e, esticadas as canelas, vou ficar p da vida e volto pra atormentar, em espírito, quem tiver a ousadia de tê-la. Canta que a depressão sobe.
 Este é só um caminho que chegou ao final, e vai ser assim com qualquer um.
Não mitifiquem, nem mistifiquem minha passagem por aqui, sou só mais uma mãe, mulher, amiga, parente, pessoa. Sem essa de ser especial, não fui uma pessoa excepcional, nunca tive a pretensão de fazer diferença.
Cuidado com os pitis, classe é fundamental. Nada de choro alto e convulsivo, desmaiar é coisa de jeca, não se atrevam a perder a elegância! Mesmo morta, quero manter a pose. E mantenham o prumo, vocês que vão assistir o último ato.
Não temo a velha senhora. A cada dia me aproximo desse encontro, do momento em que a foice vai cortar meu ar.
Vivam, cada dia, como  se fosse o último. Na verdade, não há novidade nisso. Todo dia é mesmo o último que se vive, já que ele não volta, foi, já era, nunca será de novo. A vida está repleta de últimos dias.
Guardem o que quiserem de mim, mas gostaria que fossem as bobagens que fiz ou disse.
Prefiro que me lembrem com um sorriso ou uma gargalhada, vai ser muito inconveniente lembrarem maus momentos. Nada de constranger quem não pode se defender. Pensem bem no que vão dizer de mim, cuidado!
Nem mencionem doenças, tenho pavor desse papo. Todo mundo vai querer falar de desgraça e, aí, vira competição, não é o momento de conhecer doenças piores, desenlaces medonhos. Quero isso bem longe, não permitam, por favor!
Perfuminho suave, cai bem. Uma gotinha em cada orelha e entre os seios, já tá de bom tamanho.
Me entreguem ao barqueiro, suavemente, de preferência em silêncio, vocês sabem que aprecio esse som. Quero fazer a travessia em ambiente calmo.
De resto, gosto de estar só, de morar em mim.
Quando minha hora chegar, me dêem uns minutinhos, sozinha, meu corpo e minha alma, se ela existe, precisam se encontrar pra se despedirem e, enfim, se separarem.
Não sofram, não chorem, não lamentem, nada disso vai mudar o curso desse rio que corre para o mesmo lugar de onde veio.
Esqueçam meu lado escuro, façam a luz de mim, em mim, pra mim.
Digam adeus e mais nada, quando eu me for.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

UM HOMEM ESPECIAL

Chovia.
Os pés se arrastavam pela estrada de terra batida que a chuva transformara em lama.
Vontade de olhar pra trás, de voltar atrás, de ficar.
As lágrimas, a chuva disfarçava.
O medo do desconhecido tirava o ar.
Aquele menino de nove anos se viu obrigado a ir.
Segundo filho de uma prole grande, nove no total, mais pai e mãe.
Colonos em uma fazenda, pobres, entregavam os filhos ao mundo na esperança de terem melhor sorte.
A passagem de ida, em uma boléia de caminhão, fora paga com goiabadas e rapaduras, produzidas depois do trabalho. São Paulo era o destino, onde o caminhoneiro venderia a mercadoria com lucro.
Não lembro se, quando chegasse, já teria um emprego, lembro que começou como ajudante de cozinha, lavava louças e verduras, e dormia no depósito, atrás do restaurante.
Fingia estar resfriado pra justificar os olhos sempre úmidos e o nariz vermelho.
Demorou pra adaptar-se à solidão e procurava ler pra acalmar a saudade.
Sua escolaridade só chegara ao terceiro ano primário, mas ele conseguia ler e entender o que lia.
Trabalhava o dia inteiro e, à noite, fazia um curso de mecânica.
Aos treze anos, foi pedir emprego em uma filial paulista de máquinas de escrever e foi aceito como lavador de máquinas em conserto. Limpava- as e aprendia como consertá-las. E lia sobre tudo, inclusive sobre novas máquinas que estavam chegando. Fez um teste interno para mecânico auxiliar e, com o que aprendera lendo e vendo, foi contratado. Já podia alugar um quarto em uma pensão.
Aos dezoito, aceitou trabalhar no Rio, agora como responsável pela manutenção das máquinas mais modernas.
Perdera o medo à força, já podia encarar qualquer desafio.
Juntou dinheiro, alugou uma casinha e começou a trazer a família. Arrumou emprego para alguns irmãos e, juntos, sustentariam os pais e os outros que, ainda, precisassem.
A vida poderia ter sido diferente, se esse menino não tivesse dentro de si tanta determinação e tanta bondade.
Mas, desde que saiu de sua Nepomuceno natal, no interior de Minas, ele tinha o propósito de ter de volta a família que a má sorte separou. Trabalhou pra isso, acreditou que recriaria um lar.
Aos vinte e três, já dono de seu próprio negócio, apaixonou-se por uma menina e casou-se aos vinte e cinco anos.
Tinha um bom número de fregueses que garantiam a comida nas duas casas, dele e dos pais.
Foi sendo chamado pra novos trabalhos, era, reconhecidamente, bom no que fazia.
Trabalhava para empresas, autarquias e particulares.
Expandiu seus conhecimentos técnicos, agora consertava, também, ar condicionado, geladeiras, máquinas de lavar, qualquer aparelho elétrico e carros.
Quando ia às casas que o chamavam, invariavelmente, entrava pela porta de serviço e nunca se sentiu menor por isso. Algumas vezes, seus filhos o acompanhavam. Não se envergonhava e mostrava que qualquer trabalho é digno.( Sempre me lembro disso quando algum técnico vem à minha casa prestar serviço. Lembro dessa história de superação e dedico atenção e respeito à essas pessoas. Quando trazem seus filhos como ajudantes, meu coração derrete, fico emocionada).
Uma dessas pessoas que o chamavam era o poeta Manuel Bandeira, que morava no prédio em frente a sua oficina, no centro do Rio.
Manuel era solitário e gostava de tomar cafezinho com ele durante as visitas às máquinas do poeta. Se orgulhava de saber que as letras que o poeta batia naquelas máquinas, marcavam o papel com as tintas das fitas que ele trocara. Era pouco e era tudo pra ele. O poeta lhe deu um livro autografado que virou sua Bíblia e troféu, mostrava a todos, principalmente a si mesmo, que tudo o que passara tinha valido a pena. Sabia que não era amigo dele, era só um prestador de serviço, mas, só o fato de conhecer um homem culto, que ele admirava, era uma felicidade imensa.
Ele era assim, bom, generoso e humilde. Dizia que tudo o que conseguira na vida foi porque os pais o entregaram ao mundo para que criasse a sua história, não tinha mágoas, só agradecimento.
Durante toda a sua vida leu muito. E cantava, tinha uma bela voz. Adorava Sílvio Caldas, Orlando Silva e Francisco Alves.
Era calado, calmo e se divertia com pouco. Um programa humorístico qualquer fazia a sua alegria. E ele ria, nunca desaprendeu de ser feliz.
Criou os filhos, exigiu estudo e incentivava a leitura, a curiosidade. Todos eles se graduaram, exceto uma. Essa, resolveu tomar outro rumo e, mesmo assim, ele apoiava e entendia. Acreditava que os desgarrados buscavam a felicidade, também.
Era um exemplo de determinação e retidão. Matava um leão por dia, literalmente, para dar conforto aos seus.
Tinha muitos amigos e muitos falsos amigos, mas, quando traído, desculpava-os. Dizia que o ser humano era imperfeito e quem era ele pra exigir lealdade de quem não podia dá-la.
À todos, ajudava. Às vezes, sem poder. Nunca cobrou reconhecimento, gratidão, nada.
Cuidava de todos, dos pais, dos irmãos, da família da mulher, dos amigos, não pensava em si e muitos se aproveitavam dele, de sua bondade. Mas ele não se abalava, dizia que esse era o plano de Deus para ele.
Era a cabeça e o braço de sua extensa família e nunca faltou. Socorria os doentes, apoiava o início de vida de quem precisasse.
Relembrava seus tempos de ajudante de cozinha, aos domingos. Abria a geladeira e fazia um mexido inesquecível com as sobras da semana. Era de se comer, rezando. 
Sonhava em rever sua terra, sua Nepomuceno e fazia questão de frisar que não era São João de Nepomuceno, era só Nepomuceno, um lugar esquecido, escondido e mágico.
Nunca voltou, mas nunca a tirou de dentro de si.
Continuou gostando de rapadura e goiabada, apesar de terem arrancado a sua infância.
Nunca esqueceu suas raízes, seu chão. Era um caipira, tudo para ele era simples, descomplicado.
De vez em quando, fechava os olhos e viajava pra dentro de si, lembrando, talvez, da estrada enlameada e escorregadia.
Foi um exemplo de vida!
Sua história merece ser melhor contada. Um dia, quem sabe, eu conto.
Era chamado, carinhosamente de Bibi, vovô Bibi, Sousa.
Pra essa ovelha negra que ele afagou e compreendeu era, simplesmente, pai.
Meu pai. Meu maior orgulho.
Sou filha de um Homem muito, muito especial!

terça-feira, 12 de abril de 2011

SEJA FEITA A SUA VONTADE

Dia da inauguração do "Quisila do Capeta".
Jaqueline entra, esbaforida, acompanhada da comadre Benedita Sebastiana, conhecida como Bensa, Cidinha e sua filha Mary Help, nascida Maria do Socorro. Carregam dois caldeirões, um com  caldinho de feijão, outro com torresmos "cocrante", como anuncia Mary Help.
- Tudo em cima, Zequinha?
- E aí, Jaqui, caprichou no rega bofe?
- Num faço nada sem capricho.
- Tá uma belezura, diz Bensa.
- Deu uma trabalheira danada, mas tá deliça, completa Cidinha.
- Tu limpou direitinho a cozinha, Zequinha?
- Tá nos conforme. Tu mandou, obedeci, Jaquinha.
- Assim que eu gosto. Num vou botar meus pé na imundice.
- Tá limpinha, pode vê.
Elas descansam os caldeirões no fogão e vão conferir a limpeza geral.
- Meninas, vão dá uma olhada no bar e na mesa pra gente podê começá a arrumá o salão.
- Tia, diz Help, será que dá pra botá umas fror na mesa? Já que tem só uma, vamo enfeitá. No restaurante que eu vou, sempre tem fror nas mesa. É chique.
- Zequinha, diz Jaqui, arruma umas florzinha pra botá na mesa.
- Onde é que eu vou arrumar flor?
- Se vira. A Help disse que é fino botá flor. Ela anda em lugá caro e eles bota flor na mesa.
- Ai, meus colarinho, resmunga Zequinha, e sai pra catar flores nos terrenos próximos ao bar.
- Cumadi, diz Bensa, eu sei que vô ficá na cozinha esquentando os pedido, mas será que eu posso, de quando em vez, dá uma espiadinha na festa?
- Ô Bensa, hoje tá liberado, mas daqui pra frente teu lugá é na cozinha. Vamo levá no profissional, senão vira bagunça.
- Mami, vamo botá uns drinque nas bandeja. A gente prepara alguns, só pra dá um visual bacana, diz Help.
- Boa ideia, minha filha. Assim o povo saliva e pede um igual.
- Tua filha vai dá uma ajuda legal, Cidinha. A gente tá precisada de quem sabe das coisa de etiqueta.
- Ah, Socorro só vai a lugá de luxo, ela entende de finura.
- Tô vendo. Vai sê uma ajuda e tanto.
- Eu num tive chance de melhorá na vida, mas minha Socorro é preparada, graças a Deus.
- Você teve sorte, Cidinha, ela é uma menina de ouro.
- Que isso, gente, eu continuo simpres, sou a merma, só que ganho um poquinho mais.
- Que Deus te proteja do olho gordo, diz Bensa.
- Bom, vamo trabalhá, gente, ainda tem muito que fazê.
- Teu sobrinho vem que hora?
- Deve de tá chegando, ele num é de atrasá.
- Inda bem que ele vai tomá conta das bebida.
- E eu lá ia deixá os pé de cana vigiando as bebida?
Zequinha volta com um apanhado de flores murchas.
- Aí, Jaqui, tuas flor.
- Onde tu catou isso, home de Deus, no cemitério?
- Por que?
- Tá tudo seco, murcho.
- Ô Jaqui, tu vive em Bangu, aqui o sol nasce no chão. Tá seco porque num tem jeito, seca mesmo, com o calorão.
- Tá bom, Zequinha, dá lá pra Help pra ela vê o que pode fazê. Mas tu podia de tê comprado umas florzinha, né?
- A verba tá curta, já tô gastando por conta.
- Tudo que você tá gastando é por tua conta, sabia? Num vai entrar na divisão dos lucro, não.
- Cumé que é? Num tem reembolso?
- O acordado foi tu entrá com a grana, num vem dá uma de esperto.
- Eu pensei que o que eu gastei ia ser descontado e, aí sim, dividia o resto.
- E eu te falei pra num pensá, tu num tem treino.
- Tia, num tem cinzero na mesa?
- Tá proibido fumá em lugá público, antecipa Zequinha.
- Tu é unha de fome. Vai comprá uns cinzero pra botá na mesa.
- Compro nada. Vou pegá uma latinha vazia, corto no meio e pronto.
- Tia, num dá, né? Pega mal pra mim. Tem que sê cinzero de vrido.
- Ô Zequinha, a menina tá ajudando a dá chiqueza ao lugá.
- Seu Zequinha, a minha image tá em jogo, num posso deixá passá qualquer coisa. Tem que tê crasse. 
- Olha aqui, gente, num tô preocupado com classe, com finura, com nada dessas mer... meleca, não.
Só queria um lugazinho legal pra gente ouvi um sambinha, tomá uns gorós, dá risada, só isso.
- Então num devia de tê me chamado pra sê sóça.
- Eu chamei? Tu já chegô aqui de rainha, cag... ditando regra. Pô, Jaqui, um home tem limite!
- Cumadi, pega as panela com as menina, num vai tê tira gosto nenhum!
- Calma, Jaqui. Pega leve, Zequinha. Vamo baixá a fervura, diz Bensa.
- Calma uma pinóia. Eu tava na boa em casa, ele que inventô de me meter nessa furada!
- Num é furada, não. E se num quisé, tem gente que qué!
- Então chama teus pessoal, quero vê eles dá conta do serviço. Vai tudo cair no chão, mamado.
- Mulher e negoço num combina. Vem tudo querendo dá ordem.
- Olha como tu fala, rapaz. Tu tá no mundo porque uma mulher te pariu!
- Num xinga a minha mãe, não. Ela tá na santa paz do Senhor.
- Na paz, coitada, num tá não. Porque ela tá vendo a besta que botou no mundo.
- Tia, Seu Zequinha, que isso? A gente é tudo amigo, aqui. Vamo esfriá as cabeça.
- É ela que começô a briga.
- Tu que tirou a palavra e voltô atrás.
- Tu que torceu o trato. Num era isso que eu falei pro Nem.
- Tu encharcou o Nem de pinga e tentou dá o golpe.
- Encharquei?! Ele tomô duas cerveja, de graça, isso num dá nem pra saída.
- Tomô de graça, uma ova, o buteco é meu, também, ele tomô da minha parte.
- O MEU botequim é seu, também? Desde quando?
- Desde ontem, quando você me botô na sociedade.
- Se botei, tô tirando. Pode levar suas comadre e suas panela. 
- Olha só, seu Zequinha. Eu tenho um criente adevogado porisso eu sei o que tô falando, o senhô num pode de tirar ela, não. 
- Cumé que não? Tem nada escrito, é só de boca.
- Tem testemunha.
- Que testemunha?
- O Nem, ele é testemunha que você me deu sociedade.
- Marido num vale. E foi você que falou que ele vive mamado. Bebum num conta.
- E, ainda, te processo por difamação.
- Tu tá de brincadeira, Jaqui.
- Tô? Paga pra vê.
- Seu Zequinha, melhó deixá como tá. Se mexê vai dá dor de cabeça.
- Melhó escutá o bom conselho, minha filha entende desse negoço, ela trabalha com esse povo todo.
- Que que eu faço com as panela, cumadi?
- Que que ela faz, Zequinha?
- Volta com elas pra cozinha.
- Isso, seu Zequinha. E eu tenho uma surpresinha pro senhô.
- Que Deus me ajude!
- Relaxa, é coisa fina.
- Diz com cuidado pra festa num virá velório.
- Minhas amiga vai trabalhá de graça pro senhor.
- Fazendo o que?
- Bom, eu já sô "doruma", o senhô já sabe o que é, né?
- Sei, vai ficá na porta escolhendo quem entra, né?
- Isso. Elas vai sê P. R. Sabe o que é?
- Sei, não. Mas deve de sê coisa fina, né?
- Finíssima. É pubric releixon.
- Tudo bem, Socorrinho. Nem quero saber o que é. Entreguei pra Deus.
- Tá bem entregue, seu Zequinha. Com ele eu me entendo.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

TEORIA E PRÁTICA DA PAIXÃO

- Olha bem, vamos curtir e deixar rolar, não vamos nos envolver, não estou pronta pra isso.
- Eu, também, não queria nada sério. Acabei de sair de uma relação difícil.
- Que bom! Tudo que eu quero, agora, é liberdade.
- Mas você não se sentia livre?
- Ah, não. Eu era escrava do sentimento que  sentia.
- Escrava ou dependente?
- E não dá no mesmo?
- Não, não é a mesma coisa.
- Questão de ponto de vista.
- Se você se sentia escrava, alguém te escravizava. Se era dependente, precisava da escravidão.
- Dialética. No final, era o afeto por alguém que me mantinha presa.
- Tá, não vou aprofundar, mas discordo.
- Pode discordar, é até bom não pensarmos igual, mas tenho minhas razões pra não querer me envolver agora.
- Razões que eu respeito porque... não estou apaixonado.
- Se estivesse, não respeitaria?
- Não, discutiria, tentaria argumentar a meu favor.
- Mas não respeitaria a minha decisão de não me envolver?
- Teria que aceitar, não posso impor minha vontade, mas, ainda assim, tentaria.
- Deixa eu te dizer uma coisa. Estou vacinada contra a paixão, já sei até onde posso ir pra não ser pega por ela. Quando sinto que estou me apaixonando, recuo e fecho a porta. E saio sem sofrimento.
- E como se faz isso?
- Treino, aprendi a frear qualquer sentimento que implique maior compromisso.
- Olha, eu, também, tenho medo de me machucar, tomo cuidado, vou devagar, mas não consigo definir o limite. Quando vejo, já estou apaixonado e, só então, lido com isso.
- Então, é hora de você parar, não quero te machucar, não vou me entregar a qualquer paixão que apareça no meu caminho. Nenhuma. Não é você que eu não quero, é o que posso sentir por você. Porisso, não se apaixone, não quero que se fira, não estou e nem vou me apaixonar por você.
- E você acha que pode determinar isso?
- Se você quiser curtir, sem compromisso, vamos  nessa. Mas, se você tem dúvidas de que pode segurar a paixão, paramos aqui.
- Não entendo, você prefere se negar a ser feliz, por dias que seja, se boicotar, a arriscar?
- Que papo é esse? Tínhamos um acordo de não nos envolvermos.
- Eu não fiz acordo nenhum, eu disse que queria estar com você, onde isso vai dar... não sei, não posso controlar.
- Mas eu não quero te machucar.
- Esse problema é meu, eu que vou ter que administrar o que sinto, correspondido ou não.
- Não é bem assim. Você vai acabar me cobrando, como se eu fosse responsável pela sua tristeza. Vai se sentir rejeitado e eu vou me sentir culpada.
- Então, a preocupação não é com o que eu possa sentir, é como você vai se sentir se eu sofrer.
- Você não está apaixonado, está?
- E se estiver, o que você vai fazer?
- Vou ter que me afastar, embora não queira. Gosto de estar contigo, dos momentos que passamos juntos, da sintonia que temos, de nos divertirmos juntos. Gosto de você, mas não estou apaixonada.
- Porque controla suas emoções, não é?
- Exato, porque não quero me apaixonar.
- Eu não queria, também, mas não se racionaliza sentimento, não se breca antes de sentir. Ele vem, independentemente de qualquer tentativa de controle. Se fosse assim, ninguém sofreria por amar alguém e não ser correspondido ou por terminar uma relação. Não existe central de controle emocional. É o medo que está falando, não é você.
- Não tenho medo, tenho certeza que não vou me apaixonar, se não quiser.
- Vou, mais uma vez, aceitar seu argumento, mas, nem sempre, quem tem argumento, tem razão.
- Você vai fazer com que eu me mantenha longe de você.
- Por que? Eu represento algum perigo pras suas convicções?
- Perigo nenhum. Mas não pretendo ser um risco pra você.
- Por que não deixa que eu tome conta dos meus, possíveis, problemas?
- Porque não são possíveis, são certos.
- Tá bom, você me telefona, me dá carinho, me procura, mas não sente nada por mim.
- Já disse que gosto de estar com você, de dormir abraçada com você, de sair, de dançar, de não fazer nada com você, mas não estou apaixonada, não estou, lamento.
- Não lamente, não vou aproveitar o fato de você gostar da minha companhia, de se sentir feliz comigo e te cobrar compromisso. Se você não quer, mesmo, me amar, melhor nos separarmos.
- Por que tem que ser tão radical?
- Porque você não aceita outra alternativa.
- Qual poderia ser?
- Perder o medo, se deixar levar, sofrer, se for o caso, mas ter o prazer de sentir o coração bater mais forte, saborear a expectativa do encontro, se arrepiar só em pensar no outro, sorrir pra si mesma, relembrando o quanto é bom amar alguém e ser amada. Se entregar, sem pensar que isso, um dia, pode terminar. Terminar sem começar, desculpe, é covardia, não é se preservar do sofrimento. Porque, sem tentar, vai sofrer igual e se questionar se não deixou escapar alguma coisa valiosa. Vai, sempre, se perguntar o que teria acontecido, se tivesse tido a coragem de se apaixonar.
- Você não entende.
- Acho que entendo, sim. Eu te incomodo, porque você está começando a se perguntar por que eu te mobilizo, por que sente a minha falta?
- Eu não vou me apaixonar por você.
- Já entendi. Não vou te pressionar, mas não vou esperar pra ver se o que eu sinto pode ecoar em você. Você está tão determinada a me afastar que eu não tenho o direito de ficar ao seu lado.
- Mas não podemos ser amigos? Não quero te perder.
- Ninguém perde o que não não lhe pertence.
- Viu? Vira sempre a mesma coisa, posse, dependência.
- Não, a diferença é que posse é se sentir dona do objeto do amor, pertencer é querer se entregar, sem reservas, sem rede de proteção, é pagar pra ver, não é se tornar proprietária ou propriedade. É se associar ao outro, se permitir amar outro, além de si, não se escudar em experiências passadas e colocar tudo no mesmo saco. O padrão, quem estabelece é você, sou eu, não tem que ser o mesmo a vida inteira. Mas entendo que você não queira arriscar.
- Você não vai me ver nunca mais?
- Enquanto não surgir outra pessoa que eu possa amar, que não tenha medo de me amar, que não minta pra si mesma, que não finja que não sente nada por mim, acho melhor não nos encontrarmos.
- Mas você mentiu, quando disse que só queria curtir.
- Não, não menti, e não vou mentir, agora. Me apaixonei por você e não queria, aconteceu e não tenho controle sobre isso e, infelizmente, você não pode controlar o que sinto.
- Não se afaste, vamos tentar ser amigos. Prometo que não vou te machucar.
- Não prometa o que não pode cumprir, não depende de você.
- Você sabe o que sinto por você.
- Se não for dito, não há como saber.
- Eu não sei como dizer.
- Quando souber, me avise. Pode ser que, ainda, me interesse ouvir.
- E se não interessar mais?
- Não sei, não vai ser problema meu. Já que você quer perder antes de ter, lide com isso.
- Você está terminando tudo?
- Como terminar o que você não quer começar? Não vou ser seu estepe emocional, gosto de você mas não vou esquecer de mim. No final do dia, vou ter que conviver comigo.
- Vamos lá pra casa, abro um vinho e conversamos mais um pouco.
- Não, não vou entrar nesse jogo de faz de conta. Vamos acabar na cama e depois acabo sozinho, com mais uma lembrança e mais uma rejeição.
- Posso te ligar, amanhã?
- Pra dizer o que? Que sente a minha falta, que quer me ver?  Você não pode dizer o que quero ouvir.
- E se eu disser, agora?
- Pode mentir e dizer pra me reter ou pode dizer e, realmente, começar uma nova história. Qual resposta você escolhe?
- Escolho você, escolho nós.
- Tem certeza que quer se atirar nesse precipício?
- Não tenho mais nenhuma certeza, você acabou com elas.
- Então, diga o que queria me dizer, apesar das incertezas.
- É a você que eu escolho pertencer, te amo.
- Eu te amo. Com certeza, mais que ontem e, provavelmente, menos que amanhã.
- Tá bom, mas vamos segurar um pouco a babação, só pra não enjoar de cara.
- Que osso duro de roer!