quarta-feira, 23 de novembro de 2011

RÁDIO SAUDADE

Sempre que ouço Caetano, lembro de minha querida Gotty. Amiga de longa data e moradora vitalícia em meu coração.. Não sei porque faço este link, não consigo ligar uma música específica a um determinado momento. Deve ser porque Caetano foi meio que onipresente nos anos setenta.
E aí, como que por feitiço, desencadeio lembranças de uma época rica em acontecimentos, alguns históricos.
Naqueles anos o mundo fervia, e nós ardíamos ao sol do Rio.
Enquanto a repressão comia solta, éramos felizes, apesar dela.
Jovens e destemidos, tínhamos um bom combate, lutar contra a ditadura, cada um a seu modo.
Na pior época, estávamos fazendo "Roda Viva", peça de Chico Buarque, que os censores, cochilando, deixaram passar e que se tornou, depois de algum tempo, alvo de ataque do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), quando fazia temporada em São Paulo.
Foi no teatro Princesa Isabel que a camisa ensanguentada do estudante Édson, morto no Calabouço (restaurante de estudantes que existia no centro da cidade) foi mostrada ao público no fim da peça. Se não me falha a memória, foi o primeiro teatro, depois aquela camisa percorreu todos os outros.
Fizemos parte da Passeata dos Cem Mil e fazíamos história, sem saber.
Esse é o lado ingrato de "fazer história". Quando estamos lá, não imaginamos o desdobramento, não calculamos o que aquilo representa no momento em que acontece. Agimos por impulso, por necessidade de reagir à truculência, pela revolta de tentarem calar um povo com armas.
Houve os que partiram prá luta armada, não era o meu caso, tenho pavor a qualquer arma.
Tempos sombrios mas, também, tempo de transformação.
Tempo do desbunde, da fossa, do movimento hippie, de muito sexo e rock'n'roll.
Tempo de amor livre, de grandes paixões, de arrebatamento.
Tempo contraditório, de guerra e união, de mordaça e, por outro lado, liberdade.
A juventude dá este poder, ser o que se quer, fazer o que der na veneta.
A falta de laços mais apertados permitia uma quase irresponsabilidade.
Gotty era e é mais alternativa, viveu em comunidade, é mais desprendida, sabe tudo de horóscopo, I Ching, estuda e aprofunda seus interesses, pinta, borda, escreve, é artista de verdade.
Eu sempre fui mais observadora, mais tímida, menos arrojada. Sempre precisei de chão firme prá pisar embora desse umas "voadas". Diria que eu era controlada. Tinha medo de enlouquecer e perder o rumo, vi muitos amigos baterem asas prá sempre, por drogas, pirações, pelo pacote daqueles tempos.
Foi uma época extremamente criativa e inspiradora. A cultura foi protagonista, deslanchou um movimento de resistência que se expandiu e invadiu mentes adormecidas. Foi bonito viver naqueles tempos. Não sou saudosista mas tenho memória e adoro ter vivido o que vivi.
E a cereja do sundae era o encontro da nossa tribo na praia de Ipanema, nas Dunas da Gal.
Todos de cara amassada das noites nos bares, discutindo o rumo da humanidade, debatendo, jogando conversa fora, rindo uns dos outros, sofrendo amores perdidos, vivendo intensamente, sendo jovens.
E tudo me veio à mente por causa de uma rádio qualquer que tocava Caetano e me lembrou da Gotty, do Solar da Fossa, dos festivais de música, do teatro engajado, da cultura efervescente, do movimento estudantil, aqui e no mundo, dos hippies, dos ensaios, das aulas na escola de teatro, dos amigos de sempre, dos que se foram e dos que ficaram no meio do caminho, me lembrou de uma vida que valeu a pena.
Éramos jovens e felizes. E sabíamos.

Um comentário:

  1. ANGELA,

    seu texto é de um primor escancarado!

    Bateu uma emoção em mim parecida com aquela que eu sinto ao ver o rosto de um bebê banguela sorrindo ou - sem esconder emoções com puritanismos broncos e provincianos - admirando aquela carioca provocante sob um sol escaldante, olhando mesmo que de soslaio para mim e a minha perplexa e eterna gratidão a Zeus por ter liberado do Olimpo, aquela provocante Afrodite.

    Estive também, nas ruas , nas praças,no calabouço, nacional de filosofia em pânico e tremendo reboliço.

    Sentí os ventos malditos e seu bafo insuportável de violência, daqueles a quem nossos impostos eram pagos para nos defender.

    Assistí a ruptura do pleno estado de direito demócrático e a terrível escarrada saída de um pulmão político fétido dos inimigos da liberdade.

    E você amiga e conterrânea ainda conseguiu encontar no fundo das suas mágoas existenciais com aquele periodo arbitrário do luto nacional da tolerância, uma lembraça restauradora que lhe confere menos acidez estomacal, apesar do câncer digestivo dos nossos ideais que, todos tivemos que suportar.

    Linda sua postagem.

    Um abração carioca, Angela!

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