terça-feira, 15 de março de 2011

ESPECTROS

Sou alérgica a carnaval. Não consigo me imaginar, enlouquecida, no meio da multidão.
Não me sinto confortável entre dez pessoas, entre milhares entro em pânico.
Mesmo assim, resolvi conferir, por insistência de minhas filhas, o mais novo bloco da cidade: Sargento Pimenta e a Banda dos Corações Solitários. Beatles, em andamento diferente.
Achei que seria interessante e divertido pra quem tem mais de 50 anos. E lá fui eu com Lady Madonna (Tati) e Lovely Rita (Nana).
Fizemos um planejamento estratégico, deixaríamos o carro no Jardim Botânico e tomaríamos um táxi pra Botafogo, local da concentração. A primeira etapa foi vencida com êxito, conseguimos estacionar com facilidade. A segunda foi mais complicada, o trânsito pra Botafogo estava, literalmente, parado. Resolvemos ir caminhando, longa distância, mas estávamos cheias de gás, sabe como é, ida é sempre uma festa. Ultrapassamos todos os ônibus e táxis que passaram por nós.
A medida que nos aproximávamos do bloco, a multidão começou a crescer e espremer.
Encontramos pessoas inesperadas e as que esperávamos encontrar não vimos, até agora.
Comecei a ficar tensa com o empurra-empurra e resolvemos nos afastar, um pouco, da panela de pressão.
Como não sou, propriamente, carnavalesca, não gosto de muvuca, de gente bêbada e suada, tomei consciência da péssima escolha que fiz.
Se, pra quem gosta, já é um inferno, pra mim era um suplício.
Um desses inesperados encontros, deu-se com Tati. Um mendigo, barbado, sujo, cabeludo e rasgado, postou-se frente à ela e, insistentemente, forçava um papo. Ela tentava desvencilhar-se, ele não lhe dava passagem, as pessoas em volta paravam de pular pra olhar a cena que aquele doido fazia. Resolvi dar uma ajuda à ela, falei pra ele se afastar, o mendigo disse:-"Quando te conheci você não era assim, não. Só porque virei mendigo, me vira a cara?", e sorriu. Mostrou os dentes mais brancos que já vi na vida, um fio de pérolas! Era um amigo dela, querido e irreconhecível. Reparamos que ele usava Armani, mendigo cheiroso!  Se abraçaram às gargalhadas e o povo em volta ficou boquiaberto, sem entender o que estava acontecendo.
Comecei a perceber o espírito da festa, pra mim. Eu estava ali pra observar, não pra participar. Não adiantava forçar a minha natureza, sou introspectiva, não sou uma explosão de alegria, sou mais um sorriso que uma gargalhada. E me vi interagindo com "amigos de infância". As fantasias eram delirantes, milhões de homens vestidos de "Cisne Negro", anjinhos, patinhos negros (debochando dos cisnes), meninas de "Tropa de Elite", tinha uma Pacificadora, tinha Loura Gelada, dentro de uma caixa imitando isopor, e um maluco de tanga, pena e apito, sessentão relembrando "Índio quer apito". Aquele era da minha geração, me enxergou e, ai meu Deus, me reconheceu. Aproximou-se e me convidou pra tomar uma cerveja com ele (embora ele já tivesse tomado todas).
Recusei, educadamente. Ele me olhou, fixamente, e disse:-"Quando a gente vai se ver?". Respondi que estávamos nos vendo. "Já que não vai ser cerveja, que tal café?". Disse que, naquele momento, não ia dar pois estava acompanhada. "Então, promete que vai me ligar e vai se encontrar comigo". Prometo, falei. "Promete que não vai esquecer? Eu vou esperar". Pode esperar, vou ligar, disse, tentando despachar o sujeito. "Vou te esperar a vida toda, você nunca saiu da minha cabeça e do meu coração, desfiz dois casamentos porque não era com você que eu estava casado, procurava nelas, coitadas, e não te encontrava. Elas não eram você, Ester!"
Ester?! Ester?! Já estava me achando a Rainha dos Corações Solitários e ele tinha a certeza de estar vendo o espectro do amor perdido.
Eu sabia que não conhecia aquela pessoa, eu era a única sóbria naquele bairro todo, suficientemente lúcida pra vasculhar a memória e não ter o registro daquele rosto, voz, nada. Achei que estava participando de uma bobagem de bêbado em um dia de carnaval, de uma brincadeira inconsequente, mas para aquele sessentão, eu representava a história de um amor marcante e mal resolvido. Ele pegou minha mão, deu um beijo longo e, trôpego, me olhou de novo e disse:-"Muito obrigado".
Voltou pra multidão onde podia se perder, só.
Fiquei me perguntando o por que de me agradecer, será que ele sabia que eu não era Ester, que eu fingi ser ela (sem saber), pra que ele pudesse aliviar, um pouquinho, o peso dessa falta?
Nunca vou saber, não importa, é só mais um na banda do Sargento Pimenta, no clube dos amores desapontados.
Minhas filhas resolveram esticar o entusiasmo em outras plagas, eu resolvi fazer a maratona de volta ao carro.
Durante a longa caminhada fui matutando sobre a relação carnaval-ilusão, carnaval-faz de conta, carnaval-fuga, carnaval-terapia, carnaval-catarse. 
Aquele ser perdido em um passado frustrado, me fez perceber quanta solidão uma pessoa pode sentir no meio da multidão, quanta saudade pode carregar na vida e quantas soluções tenta, buscando curar uma ferida aberta.
No carnaval ele podia pretender que encontrava sua Ester em muitas mulheres mas, no fundo, sabia que a que ele queria não estava lá. Por isso inventava, ou via, em outras, a possibilidade de encontrar aquela que ele buscava.
Ele deveria ser convidado pra ser padrinho da banda que levava sua história e de muitos que, como ele, são "Sargento Pimenta e a Banda dos Corações Solitários" .
Voltei pra casa com a certeza de que carnaval, definitivamente, não é a minha praia.

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