quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

MEUS DOIS PÉS ESQUERDOS


Dois pés esquerdos. 
Meu dia começou assim, com dois pés esquerdos, pesados, arrastados.
Não consigo sequer me olhar no espelho, desvio de minha própria sombra.
Se me derem "Bom dia" sou capaz de responder: "Só se for prá você!".
Saio mordendo canelas, mostrando os dentes.
Sei que vou arrastar correntes, até a noite chegar
Enfim...hoje seria um daqueles dias que poderiam, perfeitamente, não amanhecer.
Calor insuportável, céu sem uma nuvem sequer, dia lindo demais prá meu mau humor!
Enquanto tomava café, na tentativa de levar o dia com ajuda da cafeína, toca o telefone.
- Jesus, não mereço. Sete da manhã e já vem encheção de alguém querendo me vender qualquer coisa?
Não atendi aquele insistente que não desligava. O telefone tocou umas duzentas vezes.
Abri o jornal, mesmo sabendo que as notícias iriam piorar meu humor.
E o maldito telefone tocou, de novo.
Comecei a ficar preocupada. E se fosse alguém precisando falar comigo?
O dia já estava perdido mesmo, resolvi atender.
Pronta prá despejar minha irritação, disse com toda a antipatia do mundo:
- ALÔ!
- Amada, acabei de pisar em solo brasileiro e precisava ouvir sua voz!
- Acho que você ligou para o número errado.
- Que número errado, nada. Me certifiquei que era o seu telefone.
- Se certificou?... Quem está falando?
- Tá sentada?
- Querida, não consigo ficar em pé!
- O que aconteceu com você? Tá doente? Inválida?
- Depende...O prazo de validade está acabando, mas não estou doente. Peraí, quem tá falando?
- IRANY!

Aí, eu entendi porque ela me perguntou se estava sentada. Se estivesse em pé, cairia, mas como estava sentada, dei um pulo e me equilibrei prá não cair. Fiquei, imediatamente, curada de minha invalidez.

- IRANY PASSOS?
- Ela mesma, em carne e osso! Quer dizer, em voz, por enquanto. Ou você conhece outra Irany? Quase impossível!

Meu dia começou, com aquele telefonema. Mudou da água para o vinho.

-Amiga, que surpresa boa. Onde você está?
- Acabei de pousar. Estou no aeroporto, louca prá te ver.

Irany, que havia se casado com um dinamarquês, saiu do Brasil em 1988 e nunca mais voltou. Nos correspondíamos, com frequência, por cartas e depois por e-mails. Nossa amizade nunca ficou no passado.
Sempre soubemos uma da outra, durante esse longo tempo.

- Não sai daí, vou te buscar!
- Não, vou pegar um táxi e vou prá sua casa.
- Sabe chegar aqui? Tem o endereço?
- Endereço eu tenho e o taxista que se vire.
- Vem logo!
- Tô indo. Já!

Irany, minha mais querida amiga, desde a época do Conservatório, estava de volta à minha vida.
Engoli o café e corri para arrumar a casa, tomar banho, queria estar completamente disponível, quando ela chegasse.
E ela chegou! A mesma Irany que eu guardava na memória, barulhenta, alegre.

- Minha rainha Zulu! 

Era assim que eu a chamava, negra altiva e linda.
E nos abraçamos aos prantos!
Nos olhávamos, como se não acreditássemos que estávamos juntas, novamente.

Exatamente nesse instante, o despertador tocou, me trazendo de volta de meu sonho.
Meio zonza, entre o sonho e a realidade, abri os olhos e lá estava o dia lindo, azul, com um sol imenso.
Meu dia ia começar, feliz, resplandecente. Meu sonho, de tão bom, me trouxe a certeza de que não importa o que está fora. O que você mantém guardado em si é que é o combustível de uma vida que vale a pena viver, todos os dias, com esperança e alegria.
Irany continua na Dinamarca, sem previsão de vir ao Brasil, mas de longe, sem saber, minha mais amada amiga, me deu de volta o sorriso que ela escancara e a esperança de que todo dia será o melhor dia de minha vida.






2 comentários:

  1. Não esperava esse final, bonito texto.

    Thoughts-little-princess.blogspot.com

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    1. Flávia.
      Quando o final é o começo, a vida fica melhor.
      Obrigada pela visita. Volte sempre.
      Beijo

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