quinta-feira, 14 de abril de 2011

UM HOMEM ESPECIAL

Chovia.
Os pés se arrastavam pela estrada de terra batida que a chuva transformara em lama.
Vontade de olhar pra trás, de voltar atrás, de ficar.
As lágrimas, a chuva disfarçava.
O medo do desconhecido tirava o ar.
Aquele menino de nove anos se viu obrigado a ir.
Segundo filho de uma prole grande, nove no total, mais pai e mãe.
Colonos em uma fazenda, pobres, entregavam os filhos ao mundo na esperança de terem melhor sorte.
A passagem de ida, em uma boléia de caminhão, fora paga com goiabadas e rapaduras, produzidas depois do trabalho. São Paulo era o destino, onde o caminhoneiro venderia a mercadoria com lucro.
Não lembro se, quando chegasse, já teria um emprego, lembro que começou como ajudante de cozinha, lavava louças e verduras, e dormia no depósito, atrás do restaurante.
Fingia estar resfriado pra justificar os olhos sempre úmidos e o nariz vermelho.
Demorou pra adaptar-se à solidão e procurava ler pra acalmar a saudade.
Sua escolaridade só chegara ao terceiro ano primário, mas ele conseguia ler e entender o que lia.
Trabalhava o dia inteiro e, à noite, fazia um curso de mecânica.
Aos treze anos, foi pedir emprego em uma filial paulista de máquinas de escrever e foi aceito como lavador de máquinas em conserto. Limpava- as e aprendia como consertá-las. E lia sobre tudo, inclusive sobre novas máquinas que estavam chegando. Fez um teste interno para mecânico auxiliar e, com o que aprendera lendo e vendo, foi contratado. Já podia alugar um quarto em uma pensão.
Aos dezoito, aceitou trabalhar no Rio, agora como responsável pela manutenção das máquinas mais modernas.
Perdera o medo à força, já podia encarar qualquer desafio.
Juntou dinheiro, alugou uma casinha e começou a trazer a família. Arrumou emprego para alguns irmãos e, juntos, sustentariam os pais e os outros que, ainda, precisassem.
A vida poderia ter sido diferente, se esse menino não tivesse dentro de si tanta determinação e tanta bondade.
Mas, desde que saiu de sua Nepomuceno natal, no interior de Minas, ele tinha o propósito de ter de volta a família que a má sorte separou. Trabalhou pra isso, acreditou que recriaria um lar.
Aos vinte e três, já dono de seu próprio negócio, apaixonou-se por uma menina e casou-se aos vinte e cinco anos.
Tinha um bom número de fregueses que garantiam a comida nas duas casas, dele e dos pais.
Foi sendo chamado pra novos trabalhos, era, reconhecidamente, bom no que fazia.
Trabalhava para empresas, autarquias e particulares.
Expandiu seus conhecimentos técnicos, agora consertava, também, ar condicionado, geladeiras, máquinas de lavar, qualquer aparelho elétrico e carros.
Quando ia às casas que o chamavam, invariavelmente, entrava pela porta de serviço e nunca se sentiu menor por isso. Algumas vezes, seus filhos o acompanhavam. Não se envergonhava e mostrava que qualquer trabalho é digno.( Sempre me lembro disso quando algum técnico vem à minha casa prestar serviço. Lembro dessa história de superação e dedico atenção e respeito à essas pessoas. Quando trazem seus filhos como ajudantes, meu coração derrete, fico emocionada).
Uma dessas pessoas que o chamavam era o poeta Manuel Bandeira, que morava no prédio em frente a sua oficina, no centro do Rio.
Manuel era solitário e gostava de tomar cafezinho com ele durante as visitas às máquinas do poeta. Se orgulhava de saber que as letras que o poeta batia naquelas máquinas, marcavam o papel com as tintas das fitas que ele trocara. Era pouco e era tudo pra ele. O poeta lhe deu um livro autografado que virou sua Bíblia e troféu, mostrava a todos, principalmente a si mesmo, que tudo o que passara tinha valido a pena. Sabia que não era amigo dele, era só um prestador de serviço, mas, só o fato de conhecer um homem culto, que ele admirava, era uma felicidade imensa.
Ele era assim, bom, generoso e humilde. Dizia que tudo o que conseguira na vida foi porque os pais o entregaram ao mundo para que criasse a sua história, não tinha mágoas, só agradecimento.
Durante toda a sua vida leu muito. E cantava, tinha uma bela voz. Adorava Sílvio Caldas, Orlando Silva e Francisco Alves.
Era calado, calmo e se divertia com pouco. Um programa humorístico qualquer fazia a sua alegria. E ele ria, nunca desaprendeu de ser feliz.
Criou os filhos, exigiu estudo e incentivava a leitura, a curiosidade. Todos eles se graduaram, exceto uma. Essa, resolveu tomar outro rumo e, mesmo assim, ele apoiava e entendia. Acreditava que os desgarrados buscavam a felicidade, também.
Era um exemplo de determinação e retidão. Matava um leão por dia, literalmente, para dar conforto aos seus.
Tinha muitos amigos e muitos falsos amigos, mas, quando traído, desculpava-os. Dizia que o ser humano era imperfeito e quem era ele pra exigir lealdade de quem não podia dá-la.
À todos, ajudava. Às vezes, sem poder. Nunca cobrou reconhecimento, gratidão, nada.
Cuidava de todos, dos pais, dos irmãos, da família da mulher, dos amigos, não pensava em si e muitos se aproveitavam dele, de sua bondade. Mas ele não se abalava, dizia que esse era o plano de Deus para ele.
Era a cabeça e o braço de sua extensa família e nunca faltou. Socorria os doentes, apoiava o início de vida de quem precisasse.
Relembrava seus tempos de ajudante de cozinha, aos domingos. Abria a geladeira e fazia um mexido inesquecível com as sobras da semana. Era de se comer, rezando. 
Sonhava em rever sua terra, sua Nepomuceno e fazia questão de frisar que não era São João de Nepomuceno, era só Nepomuceno, um lugar esquecido, escondido e mágico.
Nunca voltou, mas nunca a tirou de dentro de si.
Continuou gostando de rapadura e goiabada, apesar de terem arrancado a sua infância.
Nunca esqueceu suas raízes, seu chão. Era um caipira, tudo para ele era simples, descomplicado.
De vez em quando, fechava os olhos e viajava pra dentro de si, lembrando, talvez, da estrada enlameada e escorregadia.
Foi um exemplo de vida!
Sua história merece ser melhor contada. Um dia, quem sabe, eu conto.
Era chamado, carinhosamente de Bibi, vovô Bibi, Sousa.
Pra essa ovelha negra que ele afagou e compreendeu era, simplesmente, pai.
Meu pai. Meu maior orgulho.
Sou filha de um Homem muito, muito especial!

3 comentários:

  1. Foda, mae!! Fiquei emocionada!! Vovo Bibi era um cara exemplar mesmo... E EU ainda vou a Nepomuceno... ;)

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  2. Sensacional, tia! Vovô Bibi era um exemplo mesmo...a dignidade em pessoa!!!

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  3. vocês são umas péla-sacosssss...eu só consigo chorar lendo isso :)

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